Nenhum enxadrista hoje é mais conhecido que Elizabeth Harmon – a personagem interpretada por Anya Taylor-Joy em “O Gambito da Rainha”. A minissérie da Netflix, lançada em outubro do ano passado, foi assistida por mais de 62 milhões de usuários da plataforma de streaming e foi a grande responsável pelo xadrez ter atingido seu pico de popularidade da década nos últimos meses.
“Xadrez é considerado por muitos como um esporte monótono, chato. E pude notar que as pessoas que assistiram à minissérie conseguiram enxergar no jogo um lado emocionante, instigador. ‘O Gambito da Rainha’ conseguiu desmistificar esse tabu”, diz a professora Viviane de Fátima Bernardo, 35, que dá aulas de xadrez há mais de 20 anos.
A popularidade de “O Gambito da Rainha” levou milhares de fãs a recorrerem à internet para esclarecer dúvidas em relação à minissérie e ao próprio xadrez. A reportagem procurou enxadristas maringaenses para responder alguns dos questionamentos que surgiram.
O que é Gambito da Rainha?
“No xadrez o ‘gambito’ é quando, no momento da abertura [nos lances iniciais de uma partida] um jogador oferece um peão ao adversário como sacrifício em troca de uma vantagem. Ou seja, entrega um peão em troca de uma posição melhor ou para organizar um ataque mais rápido e mais eficiente”, explica Viviane.
O Gambito da Dama e a Defesa Siciliana, mencionados na série, são duas populares jogadas de abertura no xadrez. Você não leu errado: Gambito da Dama.
O nome original da série, em inglês, é “The Queen’s Gambit” – “O Gambito da Rainha”, em uma tradução literal. No Brasil, no entanto, os enxadristas chamam a peça de Dama.
Como é mostrado na minissérie, as peças de xadrez e as casas do tabuleiro possuem nomes. Os torneios oficiais exigem que os jogadores anotem em uma súmula a sequência de lances da partida.
“Na anotação o Rei é representado pela inicial R. Para diferenciar as peças convencionou-se chamar a ‘Rainha’ de Dama, usando a inicial D para descrevê-la”, conta o funcionário público Ulisses Lucas da Silva, 27, que até o ano passado também costumava dar aulas de xadrez. “Quem chama a Dama de Rainha normalmente é alguém que não está familiarizado com o ambiente do xadrez e normalmente acaba sendo visto como um iniciante”, completa.
“O Gambito da Rainha” é uma história real?
Elizabeth Harmon só existe na ficção. A minissérie é baseada em um romance homônimo escrito por Walter Trevis em 1983 e que virou um best-seller no ano passado graças ao “efeito Netflix”.
A enxadrista que mais se pareceu com a protagonista da série na vida real provavelmente foi a húngara Judit Polgar, que raramente participava de torneios exclusivamente femininos e chegou a figurar entre os 10 melhores enxadristas do mundo competindo contra homens. Neste caso, todavia, a vida imitou a arte. Ela só foi reconhecida como Grande Mestre (a titulação de maior prestígio oferecida pela Federação Internacional de Xadrez) em 1991.
“Beth Harmon se parece muito com Bobby Fischer”, opina Silva. Robert James Fischer foi um excêntrico enxadrista americano que surgiu como um jovem prodígio e se tornou campeão mundial em 1972 vencendo… Um enxadrista russo. “O maior adversário da Elizabeth Harmon, na série, é o russo Borgov, tido como melhor do mundo. Fischer se tornou o campeão mundial derrotando o soviético Boris Spassky, naquele que é considerado o ‘Confronto do Século’ no xadrez”, analisa.
Riqueza de detalhes
“O Gambito da Rainha” contou com dois consultores para garantir que a produção não apresentasse erros técnicos em relação ao xadrez. Além do ex-campeão mundial Garry Kasparov a série também convidou o treinador nova-iorquino Bruce Pandolfini, que já havia sido consultor do filme “Lances Inocentes” (1993), onde ele também é um personagem – mais precisamente o treinador do jovem protagonista Josh Waitzkin.
Os consultores fizeram um trabalho irretocável. “Quando o xadrez aparece nos filmes é comum vermos peças em posições que não fazem sentido ou sendo movimentadas de forma aleatória. Neste ponto a minissérie é impecável, sem erros”, afirma Silva. “O ambiente do xadrez, as competições, foram retratadas com grande riqueza de detalhes”, acrescenta.
O “Boom” do xadrez online
“O que mais gostei no ‘O Gambito da Rainha’ foi do número de pessoas que começaram a procurar o Clube de Xadrez depois que a minissérie foi lançada”, diz Jomar Egoroff, 56, heptacampeão paranaense de xadrez.
“Até adultos me procuraram para pedir aulas particulares, perguntar sobre livros para iniciantes e onde comprar tabuleiros e peças”, diz Viviane de Fátima Bernardo, que desde 2004 ensina xadrez para crianças em escolas da rede pública e privada.
A pandemia do novo coronavírus, no entanto, dificultou os encontros presenciais. A saída foi apelar para a internet. Segundo estimativas da Federação Internacional de Xadrez (Fide) eram jogadas cerca de 11 milhões de partidas online diariamente no início de 2020. Durante a quarentena o número chegou a 17 milhões.
Em novembro do ano passado a Federação de Xadrez do Paraná (Fexpar) organizou o Campeonato Paranaense de Xadrez Blitz Online 2020, que foi vencida pelo engenheiro maringaense Gabriel Tortola Flores Vieira, 31, que gostou da experiência. “Espero que os torneios online continuem mesmo depois da pandemia, pois, além de não gerar despesas com viagens, sobra mais tempo para ficar com a família”, diz ele, que recentemente se tornou pai pela primeira vez.
Jogue contra Beth Harmon
A plataforma Chess.com foi uma das que mais cresceu com o sucesso de “O Gambito da Rainha”, aumentando em mais de 500% a quantidade de usuários cadastrados. Uma das novidades da plataforma é a oportunidade de jogar uma partida de xadrez contra Elizabeth Harmon.
Para jogar contra ela basta acessar a página (https://www.chess.com/) e selecionar a opção “Jogar com Computador”. Um dos bots disponíveis é o da estrela de “O Gambito da Dama”. No total são sete versões diferentes da enxadrista: desde sua versão de 8 anos, quando está começando a aprender a jogar, até a Beth Harmon de 22, quando ela está no auge.