A senadora brasileira Mara Gabrilli é a entrevistada deste 21 de junho do Podcast ONU News. Ex-vereadora, deputada e atual senadora por São Paulo, ela representou o Congresso na Conferência dos Estados Partes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, nas Nações Unidas, em Nova Iorque.
No evento, que terminou em 15 de junho, Mara Gabrilli se reuniu com representantes da sociedade civil e dos países. No próximo ano, ela concorre como candidata do Brasil para o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um mandato que já desempenhou de 2019 a 2022.
Desde um acidente de carro, que a deixou tetraplégica em 1994, a vida da jovem publicitária e psicóloga, mudou completamente. “Tive que reaprender a respirar”, relembra a hoje senadora que chegou à política por meio de outras pessoas com deficiência que passou a apoiar em sua ONG, criada após o acidente.
“Eles que me empurraram para a política”, conta sobre o contato com mulheres e homens que também vivem com uma deficiência.
Uma das ações de Mara Gabrilli é apoiar o preparo atletas paralímpicos para as Paraolimpíadas.
Acompanhe a conversa com Monica Grayley e Mayra Lopes.
ONU NEWS: Ela é publicitária, psicóloga e política. Em 1994, sofreu um acidente de trânsito que a deixou tetraplégica. Abriu um instituto e passou a se dedicar à causa das pessoas com deficiência. O trabalho foi aumentando. Foi eleita vereadora por São Paulo, deputada federal, senadora e, no ano passado foi candidata a vice-presidente da República numa chapa com duas mulheres. Estamos falando da senadora Mara Gabrilli, que é a convidada de hoje do Podcast ONU News. E Mayra Lopes vai fazer a primeira pergunta:
Queria começar pedindo para contar um pouquinho sobre o exoesqueleto que a senhora provou esses dias, em uma pesquisa que a senhora participou. Esteve em todas as redes sociais, saiu na imprensa no Brasil. Queria que contasse um pouquinho para a gente do que foi aquilo.
MARA GABRILLI: Nossa, foi uma experiência maravilhosa. É um exoesqueleto que se chama AtalanteX. Ele foi desenvolvido por uma startup francesa chamada WanderCraft e foi o primeiro exoesqueleto que eu conheci, que eu tenho ciência da existência, que você não precisa ter força nos braços para utilizá-lo. Todos os exoesqueletos que foram aparecendo, eu fui entrando em contato porque eu queria testar esse exoesqueleto e nunca deixaram, porque eu tenho uma lesão alta e pouco movimento de braço. Quando eu vi esse eu fiquei encantada, porque eu vi testarem.
E aí eu fui atrás da empresa e eles me procuraram no Brasil depois e a gente combinou para eu fazer um teste e agora, era já a minha intenção, e a gente vai começar a desenvolver pesquisa no Brasil. Já compramos duas unidades para o SUS para atender as pessoas com deficiência na reabilitação.
Então, assim, é uma experiência mais maravilhosa, poder compartilhar aquilo que eu senti, porque há 28 anos que eu não faço uma caminhada assim. Mas eu treinei muito para chegar nisso. E é um desafio que a gente vai ter agora na rede pública, que as pessoas vão ter que treinar para poder usar o esqueleto, ter um preparo cardiorrespiratório, um preparo muscular, um preparo de marcha.
A gente já tem uns equipamentos, tecnologias no Brasil, como um equipamento que você anda, mas numa esteira, não com essa liberdade do exoesqueleto que você sai circulando, anda de lado… é bem mais preso. Mas há anos que eu venho fazendo isso como um exercício. E o exoesqueleto ainda tem uma característica importantíssima, que você vai tirando a força dele e deixando a força da pessoa entrar.
E aí, de repente, eu estava caminhando com 65% da força dele e entrando a minha força. Então eu fui percebendo que tem ali um file que você abre, tem a memória andar preservada. Tem um sentimento de que a tecnologia está sim a serviço da saúde, a serviço da humanidade e que também valeu a pena todo o investimento no corpo.
E hoje, é uma coisa que me dá muito orgulho de dizer, mas o Brasil é conhecido como um dos melhores países em reabilitação no mundo. Claro que a gente precisa melhorar para conseguir atender a toda a demanda, mas a qualidade do serviço que a gente oferece… Acho que a minha qualidade física de saúde também demonstra isso, porque eu faço reabilitação pelo SUS e estou em muito boa forma. Isso é um serviço oferecido no Brasil.
ONU NEWS: E a senhora está aqui hoje, esse programa vai ao ar um pouquinho depois, mas participando da Conferência dos Estados Partes também. Quais são as informações… a senhora diz que o Brasil hoje está realmente num outro patamar do que estava há 20, 30 anos, não é? Mas comparando com outros países e seus colegas aqui, o que é que pode nos dizer?
MG: Eu fiquei muito feliz nessa Cosp por conta da participação de muitos auto defensores, que são jovens com alguma deficiência intelectual e que fazem trabalhos no Brasil de autodefensoria, fazem palestra e desenvolveram cartilhas de uma linguagem mais simples para você falar.
Eu não sei se vocês lembram, mas há muitos anos também um grupo de jovens com síndrome de Down do Brasil lançaram aqui uma cartilha que era “Aprenda a me ouvir, que eu aprendo a te falar”, algo assim. E eles lançaram a cartilha aqui. E agora, uma iniciativa brasileira também de fazer cartilhas com esse easy reading, de uma forma mais simples, para que as pessoas com deficiência intelectual tenham um entendimento maior e mais adequado daquilo que está sendo dito e escrito. E isso era muito necessário.
E sabe que no comitê, o Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que monitora a convenção, que a Mônica viveu junto comigo muita emoção na minha eleição. No comitê, a gente teve a participação em dois mandatos do Robert da Nova Zelândia, e ele tem uma deficiência intelectual. E acho que a primeira vez que o comitê recebeu uma pessoa com esse tipo de deficiência e que teve uma participação brilhante.
Eu me emociono só de falar do Robert. Ele reclamava dos textos que a gente tinha que ele analisar. Ele falava: “isso aqui não está totalmente acessível para uma pessoa com deficiência intelectual”. A gente precisaria de uma facilitação de leitura. O Robert muito nos ensinou.
Agora, eu me emocionei bastante já nessa Cosp, em ver esses autodefensores. Também vi o depoimento de uma moça com síndrome de Down australiana chamada Olívia, que arrancou palmas de todo mundo, aplaudiram em pé. Ela também é uma autodefensora jovem e estava ali para mostrar o quanto as pessoas com uma deficiência intelectual podem contribuir para o mundo, o quanto a gente tem para aprender com eles. Foi bem emocionante.
ONU NEWS: A senhora tem uma trajetória longuíssima, como a Mônica falou no começo da entrevista, na política no Brasil, impulsionando essas pautas, de inclusão das pessoas com deficiência, seja ela qual for, dentro da sociedade. Fazer com que elas sejam mais participativas, mais ativas e autônomas. Durante a sua trajetória, o que a senhora traria para a gente de um momento que foi emocionante, seja no Brasil ou nas suas participações internacionais, que foi destaque durante esses anos de atuação?
MG: A eleição aqui na ONU foi um momento muito, muito mágico na minha vida. Fazer todo o processo, pensando em todo o processo, e depois os quatro anos de trabalho no comitê. E eu olhando para trás, acho que eu tive com muitos. Acho que começou lá logo quando eu quebrei o pescoço. Fui me dando conta que da situação que eu me encontrava, que eu tinha que reler o mundo, sabe? Numa outra condição.
De repente, eu era uma pessoa deitada, eu só me comunicava com auxílio de uma tabela de letras e eu piscava quando alguém mostrava a letra da palavra, da frase que eu queria fazer. Eu não respirava mais sozinha, só com o auxílio de aparelhos.
Como era trasqueostomizada, também não falava porque não saía som. Essa era a forma de eu me comunicar. E aí eu me dei conta que eu tinha sobrevivido, que eu quis viver, que foi uma opção. Era melhor eu estar daquela forma do que morta.
E é meu primeiro grande desafio foi falar e respirar. Para falar, eu precisava conseguir respirar. E é muito louco a gente parar para pensar que de repente você não consegue mais respirar sozinho. Você desaprende como é que inspira e como é que expira. E não existe algo prognóstico de que eu voltaria porque estava acontecendo uma reação no meu corpo.
E aí isso foi assim, muito de repente, sabe? Vinham aquelas fisioterapeutas com a cara triste, testavam, testavam e nada ia. E de repente eu comecei a respirar. Esse foi um dos momentos mais mágicos que fez com que tudo para frente ficasse mais fácil. Porque só, poxa, eu consegui o mais difícil que era voltar a respirar.
E aí isso foi me dando uma consciência assim de inclusão, de oportunidade. Eu não consigo ser feliz me levantando sozinha.
ONU NEWS: Eu quero falar sobre ser felicidade, porque essa pergunta nem é minha. É do nosso colega Eleuterio Guevane. Ele disse que uma das coisas que o deixou bastante impressionado quando ele vê a senhora, senadora, é essa a alegria. Uma alegria que vem de dentro. Ele pergunta “Qual é a razão dessa alegria”?
MG: Ah, eu acho que primeiro poder respirar. A partir do momento que eu consegui respirar, eu passei a sair, a buscar novos e novos desafios. Aí eu lembro o dia que eu me dei conta, porque apesar de ser formada em psicologia, na época, eu nunca tinha trabalhado com isso. Eu trabalhava com publicidade, que é a minha primeira formação e nunca tinha pensado em clinicar.
Eu lembro o dia em que eu estava ali fazendo minha fisioterapia no primeiro ano, depois que eu quebrei o pescoço, que eu falei assim: “Meu Deus, eu tenho uma faculdade de psicologia, não preciso me mexer para ser psicóloga”.
Eu busquei a faculdade para fazer a residência clínica, foi um ritual de passagem muito importante, porque de repente eu tive que parar de ficar olhando para mim, de ficar vivendo eu mesma 24 horas por dia, – porque é inevitável, porque é o meu intestino, é a minha bexiga, é o meu músculo, a minha nutrição, é a minha fisioterapia, a minha terapia ocupacional. É muito ensimesmado o momento para você tentar administrar a sua vida numa situação dessas, sem mexer.
De repente eu estava ali, diante de uma pessoa que estava me relatando uma conquista, uma frustração. Eu não era mais a personagem principal da minha vida. Eu tinha que parar de prestar atenção em mim para ouvir o que aquela outra pessoa estava falando. Isso foi de uma importância gritante para mim, para continuidade, para o trabalho que eu faço hoje, para ver como o ouvir é importante, né?
No meu trabalho eu uso muito as minhas duas formações, porque uma coisa é você ter a virtude de entender a demanda que vem da população, o que a população está precisando para isso a gente tem que tem que ouvir, tem que saber ouvir e depois comunicar.
ON: Esses dias, saiu uma pesquisa falando que 90% da população global tem algum tipo de preconceito contra as mulheres. Um desses recortes fala que 39% da população do Brasil, homens e mulheres, acreditam que os homens são melhores para posições na política. Eu queria escutar o comentário da senhora sobre isso, inclusive por ter tido uma chapa exclusivamente feminina nas últimas eleições no Brasil. Qual a sua opinião?
MG: Nossa, um absurdo falar sobre isso. Foi a primeira vez que o Brasil teve uma chapa só feminina. Eu vejo a qualidade da política exercida pela mulher, isso é inegável. E uma coisa que eu aprendi, porque eu não era muito afeita a essas questões de discussão da mulher na política ou da mulher com deficiência. Eu ainda não tinha sido invadida emocionalmente por essa questão. Foi quando eu me tornei deputada que eu me dei conta do poder da bancada feminina na Câmara Federal, porque quando a bancada feminina abraçava um projeto, não tinha partido, não tinha nada, entendeu?
Causava até um constrangimento nos homens que eles eram incapazes de ir contra. Então assim eu vi o poder daquilo. Eu era meio sozinha como mulher na bancada feminina e num primeiro momento era só eu e a Bruna Furlan, de mulheres da bancada.
Era muito comum eu estar numa reunião sozinha com uns 50 homens e eles ter hábito de falar junto. Quando uma mulher está falando, de falar junto.
Parece que é uma dificuldade de ouvir a mulher. Mas assim, eu sempre tive essa convivência, sempre achei muito complementar, porque às vezes eu ficava ouvindo. Eu sempre gostei de ouvir a opinião e eu percebia que eu tinha um jeito diferente de pensar e sem julgamento de valores, não que um seja melhor que o outro, mas a diversidade.
A mulher traz diversidade. Essa capacidade que a mulher tem de fazer várias coisas ao mesmo tempo, de prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo. Ela reflete isso na política, com um olhar muito 360 graus em tudo que ela vai fazer. É a mulher, ela traz, ela traz dentro do DNA dela a capacidade de gerar uma outra pessoa. Isso faz com que a mulher tenha um compromisso visceral com o outro.
E esse compromisso eu acho que ele acaba se estendendo para a coisa pública. Eu acho que assim não dá para dizer que não existe essa diferença. Acho que a mulher estar em posição de decisão, de poder, é representatividade, a gente tem mais mulheres que homens, não só no Brasil, mas no planeta, no planeta.
ON: Eu não gostaria de deixar a senhora ir embora antes de falar dessa grande ideia que de ajudar a treinar atletas paralímpicos que já ganharam, inclusive medalhas de ouro, uma história de sucesso e de vencer barreiras.
MG: Eu acho que eu tendo a minha vida muito mais fazendo muito mais sentido quando eu fundei, que na época eu fundei a ONG e ela se chamava PPP – eu me dei conta aqui do “publicitária, psicóloga, política” – chamava de projeto próximo Passo e depois virou Instituto Mara Gabrilli
E eu comecei com um atleta. Quando eu fundei instituto, eu trabalhava para fomentar a pesquisa científica para cura de paralisias. Ele virou para mim, um atleta, e falou assim: “por que você não faz com a gente a mesma coisa que você está fazendo como pesquisador?”. Eu falava lugar de pesquisadora no laboratório, não na rua, pedindo dinheiro. Então eu queria fazer esse serviço para eles ficarem lá, pesquisando.
Hoje, eu tenho um prazer muito grande em ser senadora e poder destinar emendas parlamentares para a pesquisa científica no Brasil. E eu comecei com esse atleta, trabalhando por ele e de repente eu tinha um time de basquete e trabalhando para que eles tivessem uniforme e conseguissem fazer inscrição nos torneios e que conseguissem chegar.
Eles foram muitos responsáveis por eu ter me candidatado, porque eles chegavam para mim e falavam assim: “é muito difícil, a gente não consegue chegar nos treinos, porque não tem ônibus acessível, porque as calçadas são horríveis”. E eu falava, eu não tenho mais como ajudar sendo o presidente de ONG, vou ter que dar um passo maior para resolver essas questões.
Eu fui impulsionada pelos atletas. O instituto ainda fica dentro de uma grande academia de ginástica em São Paulo. a Academia Bodytech, no Shopping Eldorado. Então eles treinam lá. Isso foi uma característica do Instituto, de poder ofertar um espaço, que é como o que todas as pessoas treinam.
Eu fui vendo vários meninos que não vislumbravam um futuro, né? Jovens, meninas e meninas que não vislumbrava um futuro, que eram sedentários, e de repente virar atleta e virarem campeões. Eu fui assistindo a isso repetidamente. Isso me dá força até hoje, sabe? De ver o quanto as pessoas têm capacidade de transformar as outras e de transformar a própria vida. Sair de sedentário para campeão.
ON: Ano que vem tem Olimpíadas, em Paris.
MG: Nossos atletas vão treinar com o exoesqueleto. O Comitê Paralímpico brasileiro também está adquirindo um exoesqueleto!
Fonte: Organização das Nações Unidas