A filosofia por trás da peça maringaense ‘Neverland – a cidade dos livros’

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 Os pais que se dispuseram a levar seus filhos no Teatro Barracão entre os dias 30/04 e 04/05 da última semana, certamente, assim como eu, foram surpreendidos. A peça maringaense Neverland – a cidade dos livros, magistralmente dirigida por Willian Farias, embora seja classificada como infantil, teve um forte potencial para agradar também aos adultos, além disso, a meu ver, possui um fundo filosófico para se refletir sobre a realidade e a tecnologia. É disso que trato a seguir.

            Não é real a impressão de que o nome ‘neverland‘ que consta no título seja uma referência direta para ‘Terra do Nunca’ do clássico livro Peter Pan (posteriormente popularizado pelos filmes da Disney e outras tantas produções) ou até mesmo que seja uma referência para o nome da mansão de Michael Jackson na Califórnia. A ‘neverland‘ aqui é antes uma crítica distópica e bem humorada sobre a decadência literária de um mundo que lê pouco.

            Minha intenção ao ir ao Teatro Barracão ver esta peça era apenas fugir dos programas caros e, por conseguinte, divertir as minhas crianças. Eu não tinha nenhuma intenção premeditada de escrever esta singela crônica, mas saí de lá tão cheio de vida que cá estou exercitando aqueles que considerei serem os dois maiores ensinamentos estimulados pela própria peça, são eles: α) refletir sobre a esperança de um futuro melhor – e cabe dizer que os gregos consideravam a esperança a virtude dos tempos difíceis (e creio eu que do fato de que vivemos tempos difíceis ninguém há de discordar); β) a prática da escrita e o estímulo literário, pois a peça, de um modo bem humorado intenta em fazer as crianças se interessarem mais pelos livros.

            Mas, pergunto-me: terá percebido o leitor que as intenções morais da peça Neverland – a cidade dos livros foram bastante complexas? Ora, fazer com que as nossas crianças, que vivem num mundo cheio de games, canais de YouTube e dancinhas de TikTok se interessem por livros, é, no mínimo, uma pretensão bastante difícil. Será porque os livros são chatos ou porque as novas tecnologias são muito mais atrativas? Certamente um pouco das duas coisas.

            O problema dos livros é que por vezes não fazem sentido para um mundo tão imediatista tal como o nosso tem se tornado – e não há nada de errado com isso – porém, não é nada fácil compatibilizar o espírito moderno com a lentidão da compreensão das letras, dos sentidos das frases, sentenças e das narrações, para que, enfim, perceba-se e encontre algum prazer na fantasia de criar e contar histórias. É muito mais fácil não gostar dos livros quando tudo no mundo se apresenta de modo mais atraente, além de que, o próprio conceito de livro, isto é, um aglomerado de páginas, palavras e letras, já não é por si, nada atraente. Por outro lado, o problema dos games e canais de entretenimento é que por vezes são vazios de sentido e não ensinam nada de bom (não que isso não ocorra com muitos livros já que existe uma porção de livros ruins e escritos por gente ruim), porém, o simples fato de que o entretenimento moderno tenda a ser imediatista já presume que ele muitas vezes seja irrefletido e de uma carga intelectual muito baixa (o que também não significa que não tenha bons conteúdos por aí).

             Outro fato importante é que muitas histórias infantis, tal como o já citado Peter Pan, há muito tempo já se tornaram interpretações de cinema, e então, por isso as crianças nos dizem: “por que vou ler o livro se existe o filme?”. Além disso, sempre haverá youtubers resumindo tudo em pequenos vídeos de 10 ou 15 minutos. Daí surge uma nova questão: por que uma criança se interessaria pelo caminho mais difícil de ler um livro completo, que ela poderá demorar semanas ou meses para terminar, se ela pode simplesmente ver um vídeo rápido e compreender tudo em poucos minutos?

            O que as pessoas em geral não compreendem sobre os livros é que neles não importam a ordem dos acontecimentos – em outras palavras, não existem spoilers na literatura, tal como existem no cinema – o que acontece é que na literatura, aquilo que importa é o como os autores apresentam a sequência dos acontecimentos. Não apenas no gênero da fantasia e dos romances é assim, mas também em textos mais difíceis como os filosóficos e também até mesmo daqueles eminentemente científicos.

            Por isso, a escrita é uma questão de estilo e a leitura, uma forma de compreender o estilo do escritor (a). Portanto, ler é pegar de empréstimo os pensamentos do escritor e tomar momentaneamente como seus as ideias dele (a), e é isso que as crianças jamais encontrarão nos vídeos do YouTube ou do TikTok. Os livros também são sempre o testemunho do contexto histórico do seu autor, ou seja, da sua localidade, das suas intenções e até dos seus interesses ideológicos, etc. É disso que no fim das contas tratam os livros. Eles são uma forma de materializar ideias tornando-as eternas – porém, se essas ideias não são lidas, então elas morrem juntamente com os seus criadores.

            A meu ver, está corretíssima e muito precisa a mensagem de Neverland – a cidade dos livros quando faz as crianças refletirem sobre o porquê dos estudos, fazendo-as compreenderem de um modo abstrato que a cada vez que se despreza um livro, uma página da história da literatura deixa de existir e, junto com ela, também o seu conteúdo, podendo isto ser um simpático personagem, como uma princesa, uma rainha, um rei, uma fada, ou ainda melhor, um ‘Fado madrinho‘ ou um ‘Sir. Cabeça de papel (tal como são as representações de dois dos personagens da peça), mas, no entanto – e essa é a mensagem principal – isso é sempre indesejado, já que qualquer desses personagens, deixando de existir, também levam consigo uma oportunidade à arte, ao conhecimento e ao desvelo de um fantástico novo mundo.

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