A noção de verdade em Cícero

Estão no bar: eu, Montaigne, Cícero e o leitor

Cicero 2

Clique aqui e receba notícias pelo WhatsApp

Clique aqui e receba as principais notícias do dia

Continuo na minha saga de leituras do livro Os deveres de Cícero. Já me encontro agora no segundo tomo e a leitura segue bem prazerosa e adiantada. O leitor desta singela coluna que por ventura acompanhou o meu último texto intitulado “De nossa vida a pátria reivindica uma parte”, percebeu que na ocasião fui bastante incisivo com o patriotismo romano do referido filósofo. Entrei até em discussão com alguns leitores, que com razão, me disseram que talvez eu tenha sido injusto porque tenho de considerar que a Roma Antiga de Cícero era uma nação muito diferente das modernas, e principalmente do nosso tosco Brasil ufanista atual, além disso, que possivelmente julguei o passado com os olhos do presente, o que eu não discordo, já que me parece ser sempre assim que ocorre, principalmente entre os historiadores.

Feito essas ressalvas sobre o último texto aqui publicado, agora adotarei um tom bem diferente. Serei elogioso com Cícero, que pouco a pouco conquista meu coração sedento por filosofia. Se bem que para não perder o ranço filosófico – que me parece muito bom que seja cultivado –, antes de qualquer coisa, concordarei com a opinião de Montaigne: “para dizer a verdade, e por mais ousado que se afigure, a maneira de escrever de Cícero, parece-me aborrecida […] Se passo uma hora a lê-lo – o que já é demais para mim – e recapitulo tudo o que dele tirei de substancial e nutritivo, não encontro na maior parte das vezes senão vento” (Ensaios II, X). Até concordo que Cícero pareça um tanto aborrecido – talvez isso seja justificado pelo fato de que as suas obras filosóficas e morais tenham sido escritas no fim da vida, quando lamentando o transtorno político e administrativo que se abatera na sua amada república romana sob o domínio de ditadores, sentiu-se coagido a abandonar as atividades públicas – mas, dizer que em Cícero encontramos apenas vento parece demais.

Por isso, talvez Montaigne tenha sido injusto. Quem sabe? Vamos abrir a roda, caro leitor, e vermos o que daqui irá vingar. Quero expor o que aprendi de Cícero sobre a verdade. Daí, assim, creio que poderei colocar Montaigne contra a parede (sim, uma grande ousadia da minha parte); ou então, talvez algum leitor é que me coloque contra a parede (é bem mais provável que isso ocorra, ao final isso ficará mais evidente). Vejamos, portanto, se a noção de verdade de Cícero tem algum valor ou não passa de borrasca, ventania, tempestade em copo d’água.

O nosso romano – embora eu ache bem tosco essa expressão, “nosso”, creio que já posso chamá-lo assim porque já desenvolvemos alguma intimidade com ele, além de que, quero imaginar estarmos eu, ele, Montaigne e o leitor numa mesa de bar e bem relaxadões. A imagem é essa: estou apontando para Cícero enquanto entorno um golão de cerveja e falo olhando nos olhos do leitor.

Pois bem, o nosso romano, ali no canto da mesa, escreveu no segundo tomo da sua obra Os deveres, capítulo II, que “enquanto outros filósofos asseguraram existirem coisas certas e coisas incertas”, ele, discordando, professou “existirem apenas coisas prováveis e outras não prováveis”. Eis aí a noção de verdades que existem apenas em teor de probabilidade.

Para mim, faz realmente sentido que a verdade, traçada sobre a conceituação de probabilidade seja uma opinião vinda de um advogado, que tem que julgar provas incertas, imprecisas e nem sempre muito confiáveis. É importante destacar que nosso romano não é um relativista da verdade, mas sim um probabilista. São coisas diferentes. Relativizar, no meu entender, significa considerar um lado, sem considerar o outro, seja por conta de um motivo que tenha a ver com interesses pessoais ou por argumentos que por uma dada situação específica tenham de ser defendidos. O relativismo, portanto, parece ter mais relação com a retórica, com a erística e com não querer se comprometer muito com apenas uma das faces da verdade, seja para não perder o debate ou para não perder a própria compostura. Por outro lado, a noção de probabilidade compete uma conferência de dados a partir do que está sendo apresentado, também tendo em vista a comparação com casos semelhantes com o objeto que está sendo discutido – ora é exatamente assim que incorre o julgamento de nossos juízes na nossa lei em vigor na maioria dos países. Nesse sentido, parece que a noção de verdade do nosso romano ali na ponta da mesa deixou uma herança moral inestimável.

Para finalizar sobre isso, vale dizer que para Cícero não existe verdade plena e absoluta, “só os loucos têm certeza absoluta da sua opinião” (Ensaios I, XXVI), diria Montaigne na outra ponta da mesa, concordando com o nosso romano, que considerava a verdade, meramente aquilo que mais se impõem pela força das provas. Assim, creio eu, Cícero pôde se defender tanto de ser taxado de extremo ceticismo, que em nada confia exceto se tratando de algo totalmente evidente, e, também, pôde cunhar uma boa resposta sempre que uma dúvida sem resposta certa lhe aparecesse. Ora, basta que se atente sempre as provas, aos exemplos e aos casos, para então, apenas depois disso, se decidir por onde estaria a maior chance da verdade.

Embora Cícero não diga, a sua noção de verdade, por ampliação, creio poder nos levar ao sagaz ensinamento de que não devemos nos deixar seduzir pela eloquência do discurso, pelas promessas de esperanças ou pelo charlatanismo dos políticos. Que outro mais belo conselho poder-se-ia nos ser dado no momento em que nos encontramos, ou seja, há apenas sessenta e poucos dias das eleições presidenciais. Não acredite nos políticos! Malditos sejam eles todos!

— Se nosso romano não fosse tão aborrecido teria escrito com mais paixão sobre os políticos – diria Montaigne.

— Era o medo de perder a cabeça – responderia alguém numa outra mesa ouvindo nosso papo (vale dizer, que realmente Cícero perdeu a cabeça: foi brutalmente perseguido e assassinado pela República que tanto amara).

Em verdade, nosso romano recheou sua obra Os deveres com uma porção de virtudes e deveres em que ele considerou importantes para serem cultivadas. Para embasá-las, traz os exemplos históricos, como se eles servissem para mostrar que as virtudes que ele propõe funcionam justamente porque já funcionaram em outros, assim, a mesma disposição de funcionalidade do seu entendimento de verdade parece permear toda a sua obra. Isso é muito sagaz, não da pra negar.

Agora, para mim, bem se poderia pensar não haver nada de tão genial em assimilar a verdade per probalis e que não fosse Cícero ter proposto isso, outros certamente teriam feito. Mas isso fica a julgo do leitor. Vence Cícero ou vence Montaigne?

Para avacalhar a coisa toda, após beber demais, eu quero dar um tapa na mesa para chamar atenção de todos em relação a um fato mui importante. Não há que se discutir sobre a verdade onde não há sinal de prova. Onde não há provas, não há o que se tratar de probabilidades. Toda questão abstrata (Deus, Alma e Espírito, por exemplo), é coisa que se sente, se acredita e se confia. O argumento da verdade não tem espaço aí. A razão desmorona; se vai pelo ralo toda a verdade!

Respeito (e estou aprendendo a respeitar cada vez mais), que alguém sinta sua alma, sinta seu Deus, mas – para seguir Schopenhauer que diz que só existe aquilo que faz efeito –, tenho simplesmente de perguntar, sem nunca abandonar a potência filosófica dos filósofos sinceros e não dogmáticos: onde estão os efeitos de seu Deus? Quê são os efeitos d’alma e do espírito? Que é Deus, que é a alma, que é o espírito? Mas a resposta tem de ser segura. Tem de ser no mínimo uma prova. Não valem analogias, sentimentos ou amores reprimidos. Quero uma ação de deus que se prove como dois e dois são quatro. Não há.

Nosso romano, portanto, a meu ver, só acerta pela metade: é interessante analisar a verdade per provalis quando se trata do mundo físico, político e social. Mas quando a coisa torna-se metafísica e principalmente metafísica/abstrata, aí a história muda. A única verdade que cabe aí é a verdade do coração, por isso, verdade moral, transcendental, espiritual; outras, mais pragmáticas, como a que é proposta por Cícero, aí não tem vez.

Numa palavra, Deus só se prova em verdade sensu allegorico nunca em verdade sensu stricto (idem para a Alma e o Espírito), grande lição que aprendi do personagem schopenhaueriano, Filaleto (Parerga e paralipomena, diálogo sobre a religião). É por isso, que, basta um exame geral em todo o bar que cá estamos, e teremos então de perceber que a todo instante desse textinho, bem ali do lado estava Schopenhauer, na mesa de trás, triste, chateado, porém, risonho e baforando um cachimbo de juiz da verdade.

Nessa disputa, portanto, para mim Cícero é um sábio pela metade (sua verdade só funciona na política dos homens). Montaigne é sábio por um terço (é injusto com Cícero – não é só vento e fleuma que encontramos no nosso romano). Schopenhauer é sábio inteiro (desbanca todo mundo e vai embora irritado).

Ao leitor, um abraço de bêbado. Eis a verdade, por probabilidade, por prova, per probalis; pois a cerveja acabou e è véro e deveras provável que eu beba um pouco mais.

— “A embriaguez é bestial!” (Ensaios II, II) – fala Montaigne se retirando da mesa.

Clique aqui e receba notícias pelo WhatsApp

Clique aqui e receba as principais notícias do dia

Sair da versão mobile