Comentários sobre Bolsonaro e o conservadorismo

Edmund Burke

Edmund Burke: pai do conservadorismo clássico

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Um dos preceitos fundamentais do conservadorismo clássico é a permanência da ordem civil. Descritivamente, o conservador tende a separar o Estado da sociedade, precisamente porque a postura conservadora tem como fundamento a forma de se colocar moralmente diante da sociedade, para, depois de estabelecido isso, ter uma postura perante o Estado e a gestão do poder público, ou seja, na forma, no estilo e nas ações de como se governar.

O conservador é aquele que se vale das coisas como são e como foram, isto é, em como elas se apresentam de fato na realidade, sem almejar mudanças revolucionárias e utópicas: o futuro deve ser pensado apenas com base no passado, por isso é preciso dominar a narrativa da História e vale até mesmo adaptar o discurso mais conforme as circunstâncias do que de acordo com a verdade, mas, para ser realmente justo, as correntes políticas opostas ao conservadorismo também fazem isso, o que, de certo modo, é natural nos embates, independente dos sofrimentos e desgastes causados por isso; a bem da verdade é que há uma diferença absurda entre o que ocorreu de fato e em como a história é contada: basta que se dê os mesmos documentos históricos para os mesmos historiadores, e eles contarão histórias totalmente diferentes. Em uma palavra: o resultado da pesquisa é a soma das fontes com o caráter ideológico do pesquisador.

Mas, voltemos ao assunto: o conservador legítimo, portanto, olha para o passado tendo em vista a autoridade, a obediência e a tradição, de certo modo, a política conservadora já é uma aversão à própria política, porque, como está posto, importa primeiro o modo como se coloca diante da sociedade do que a própria forma de governar ou de gerir aquilo que é público.

Quando colocamos em sacrifício nossas próprias vontades para darmos ao outro aquilo que necessita, conquistamos a legítima autoridade; é assim, basicamente, que historicamente os conservadores defendem o modo como teriam conquistado o poder social e familiar: é por terem se sacrificado em proveito dos filhos, doado seu tempo, sua força, seu dinheiro, atenção e educação, para enfim, legitimamente merecerem ter de volta o respeito, que, não é só advindo dessas entregas, mas também do próprio poder de pai, de mãe, de irmão, de avô, de avó; que implica sempre algum grau de autoridade sobre um dado indivíduo. Autoridade, portanto, é a soma do sacrifício com o poder natural advindo da posição familiar.

A autoridade conservadora, está tanto na entrega à família como no poder, inerentemente estabelecido conforme a posição em que se encontra nesta. Nesse sentido, vale dizer, que herdamos do latim, as palavras “patrimônio”, como consequência de patris (pai), que hoje, significa dinheiro ou conjunto de bens de uma família; e, a palavra, “matrimonio”, em consequência de matris (mãe), que hoje, significa casamento ou vínculo conjugal. Portanto, o homem desde os tempos moralmente primordiais teve autoridade sobre o dinheiro, enquanto a mulher, autoridade sobre a família e a boa gestão do casamento; sabemos, no entanto, que o mundo diverso que vivemos atualmente não pode ser tão simploriamente entendido. Há diversas questões sexuais e modos de organização social que para mim são frutos principalmente de um mundo super populoso (e nada poderia melhor explicar isso), portanto, não cabe aí uma noção de certo e errado quanto à forma de organização sexual ou familiar, mas sim que em um mundo tão cheio, quanto mais diversidade, naturalmente mais desunião, luta por espaço, voz e busca de sentido sobre a realidade, esse último tópico, tendo absolutamente a ver com a política, porque política é busca e aplicação de sentido em relação à realidade.

Ao conservador, no meu entender, cabe exclusivamente olhar para o passado para buscar e aplicar sentido ao presente: é fixar-se no verdadeiro significado das palavras, nos preceitos basilares da sociedade, na autoridade, na honra (incluso a dos mortos), na honestidade e no extremo respeito com o bem público, inclusive com a política, que embora ele naturalmente despreze em proveito dos seus costumes, precisa dar também bom exemplo para aqueles que compõem sua vida privada, portanto, fazendo bom uso da conduta pública: é gerir a própria família sem preocupação alguma com o que seria o ideal para a família dos outros, mas também é gerir o bem público com a preocupação do bom exemplo a se passar para a própria família. Se não houver um bom equilíbrio entre esses dois pilares, ocorrerá o seguinte: se governará o país conforme se governa a família, ou se governará a família conforme se governa o país; no primeiro caso se corre o risco de tirania, no segundo, de covardia; não acredito que o inverso disso seja possível, ou seja, ser inescrupuloso com o povo, mas, ao mesmo tempo, um patris ou matris covarde ou fleumático. Àquele covarde com o povo será covarde e desonesto com a família, por outro lado, aquele rígido em demasia com a família, também será assim com o povo.

A obediência decorre justamente da autoridade. Se eu fosse um conservador, teria de ser a autoridade da família: no caso do homem, exercer autoridade sobre o dinheiro, no caso da mulher, autoridade sobre a casa; e, ambos, devem ser obedientes e temerários a Deus. Essa obediência tem o fundamento colocado na autoridade daquele que dá as ordens: é porque Deus quer cuidar do ser humano que devemos por ele querer sermos cuidados; é pelo pai querer cuidar dos filhos e da esposa que esses devem-lhe a obediência, já que os filhos e a esposa também esperam que o pai lhes protejam; é pelos irmãos mais velhos quererem o bem dos mais novos que esses por ele têm estima; o mesmo ocorre no caso dos avós, etc. Para o conservador a lealdade familiar é um laço praticamente indestrutível – no entanto, essa lealdade tem de ser firmada na virtude da justiça, da honestidade e  da proteção (pois essas advém de Deus – entendido exclusivamente como uma figura masculina, o que ajuda à dar ainda mais autoridade à força do homem do que à inteligência e docilidade da mulher).

Para o conservador a lealdade é firmemente inerente à família, principalmente para a defesa dos interesses comuns daqueles que ali vivem e compartilham dos mesmos fins, sejam eles relativos ao trabalho, ao poder ou à partilha da dor e do sofrimento, por isso, ao que me parece, o legítimo conservador tem o dever de condenar e denunciar o seu próprio filho que não age segundo preceitos legítimos de honestidade tanto perante as virtudes da família, como as relativas à república e a religião, porque, mais vale o bom exemplo e o mantimento da honra e da boa ordem do que tirar proveito injusto de situações ou tomar os outros como meios para realização dos próprios fins: o conservador jamais pode passar a utilidade por cima da honestidade mesmo quando isso implicar condenar a desonestidade do próprio filho: é o que certamente ensinaria o filósofo Cícero, um dos primeiros filósofos que podem ser colocados no rol dos conservadores, obviamente, não nos mesmos padrões e nuances do conservadorismo clássico, ou seja, aquele pós Edmund Burke e pós-revolução francesa.

No caso da tradição, temos em vista precisamente os costumes religiosos que formaram e agruparam a família e também a fundação do Estado, mas há controvérsias sobre qual veio antes: Aristóteles, por exemplo, diz que a cidade veio primeiro que a família, já que o todo seria anterior à parte: Cf. Política, 1253a 18-29, por outro lado, Fustel de Coulange, fortemente embasado por documentos históricos, mostra que a cidade foi fundada com a união dos fogos domésticos, e que se tornou, posteriormente, o fogo da polis, por isso, teriam sido as várias religiões domésticas e familiares que se agruparam para formar a cidade e a adoração dos falecidos ancestrais, por conseguinte, agrupamo-nos em torno de um Estado, de um cemitério, de uma igreja, de um palácio, prefeitura, fórum, enfim, de uma Cidade – uma política, uma polis. Portanto, nessa última visão, em contrariedade com Aristóteles, teria sido a existência da família bem anterior à existência da cidade.

Independente de tudo isso, para o conservador, Deus é sempre o centro e Ele cumpre o papel de unir a nação em prol de um mesmo objetivo de unificação: se metafisicamente Deus é evidentemente o Soberano, pois é rei dos anjos e terror dos demônios, cumpre ao fiel, fazê-Lo ser também o soberano fenomenicamente, ou seja, rei dos homens bons e o terror dos homens maus – cabe dizer que este Deus, normalmente é Yahweh, o deus bíblico, já que no Ocidente são poucos conservadores que não são cristãos, embora seja o caso do já referido Cícero, que viveu antes de Cristo, portanto, o conservadorismo deste, implicava meramente na prudência quanto às decisões políticas. Contrariamente a isso, quando uma nação é altamente democratizada e, por exemplo, cheia de imigrantes, as chances de tornar-se moralmente diversa é enormemente aumentada, o que acaba, no fim das contas, dividindo as opiniões e consequentemente causando desunião quanto às crenças, ideais e consequentemente, quanto à busca de sentido sobre a realidade. Há uma perda de unidade quanto à adoração de um mesmo Deus, quanto à forma de organização familiar e também de todos os outros costumes, que, por fim, causam a desunião quanto à política. O legítimo conservador, portanto, quer a ordem social para manter a ordem do Estado. Também por isso que são politicamente céticos e não creem em mudanças e transformações sociais radicais: é sempre preservar, nunca revolucionar; sempre a segurança, nunca o arriscar em políticas que possam levar às instabilidades.

Portanto, a finalidade do governo conservador é:

α) Prudência nas decisões, ceticismo e decoro: tudo isso advêm do respeito por Deus.

β) Estabelecimento da ordem social por meio da união cultural da pátria (entenda por cultural tudo que não for a própria política partidária).

Agora, apenas para finalizar essa primeira parte do texto, a crítica que faço aos conservadores é a seguinte: quando as coisas vão politicamente muito mal e o ceticismo e a prudência nas decisões políticas tornam-se inviáveis, há sempre um bom espaço para se recorrer a Deus. Nesse caso há uma inversão da finalidade cética para a confiança naquilo que é transcendente: os legítimos conservadores deveriam se ater melhor a isso para analisarem os políticos em que acreditam. Explico com palavras mais claras: quando um conservador no poder fala mais de Deus do que dos problemas do cotidiano, ele está simplesmente mostrando que prefere trocar a discussão daquilo que é real por aquilo que é ideal – troca a discussão do fenômeno, para fazer digressões sobre do transcendente. O fundo inconsciente da mensagem é esta: ‘ora, não posso resolver o problema das pessoas, mas ao menos Deus está comigo, logo, quem não está comigo, está contra Deus’.

Independente das crenças políticas do leitor, convenhamos que a finalidade de um bom governo tem de ser sempre o bem das pessoas e a resolução dos problemas públicos: ambos coincidem-se e se condicionam reciprocamente, e se um governo não estimula essas coisas, então ele vai mal. No fim das contas, a felicidade das pessoas é o que importa para Deus – ou ao menos, penso eu, é o que deveria importar, embora seja evidentemente pretensioso especular sobre a vontade Dele. Mas, apenas para citar dois exemplos, não posso aceitar que Deus goste de ver pessoas passando fome ou morando mal. Ora, quem passa fome e mora mal não está feliz. Creio que alimentação e saúde pública são questões básicas para um bom governo, ainda que seja questionável que discussões distributivas e relativas à igualdade de renda sejam essenciais, principalmente para os conservadores, que em sua maioria, são ricos ou no mínimo de classe média alta, e, por isso, nem chagam perto de sofrerem desses males.

É preciso ter cuidado com os discursos e políticas dos conservadores que em tudo justificam pelo nome de Deus ou que a Ele fazem concessões em demasia, pois desse modo, o conservador, além de distanciar os não religiosos da religião, fecham-se em seus próprios núcleos e deixam de exercer o estabelecimento da ordem por meio da unificação cultural. Erra o conservador (ou qualquer outro) que acha que as religiões devem ser tratadas com inimizade; sobre isso, vale citar o inigualável Voltaire, que sabiamente disse: “não somente é de todo cruel perseguir nesta curta vida aqueles que não pensam como nós, mas não sei se não é ousadia demais pronunciar sua condenação eterna. Parece-me que realmente não compete a átomos de momento, que é o que somos, antecipar desse modo as sentenças do Criador (Tratado sobre a tolerância, 2017, p. 126).

Dito tudo isso, vamos à Bolsonaro.

Em primeiro lugar, creio que Bolsonaro seja, antes de tudo, um ignorante e absolutamente ingênuo em muitos aspectos: alguém que só vê diante de si um modo de ser, e que, de outra forma, não poderia agir. Em outras palavras, ele é aquilo que demonstra. É verdadeiro porque não sabe dissimular, e sim, sua verdade é mais pela honestidade e toscaria do seu caráter do que pela utilidade de ser honesto. Defendo, portanto, a ideia de que nem ele mesmo sabe o que está fazendo – o que é deveras arriscado se tratando de um chefe de Estado. Ele não é um conservador porque escolheu ser, porque estudou ou porque entende minimamente os preceitos conservadores. Ele simplesmente é assim, como uma espécie de instinto; instinto conservador. Aliás, é essencialmente por isso que em 2018 foi eleito tão facilmente, já que pôde despertar simpatia do eleitorado ao aparecer moralmente nu, em estado de natureza, como que feito por Deus, tal como qualquer homem ou qualquer mulher: as suas promessas eram anti-revolucionárias e antipetistas, portanto, aparentemente legitimamente conservadoras – mas, a meu ver, seu conservadorismo de instinto está longe de ser um conservadorismo da razão.

Em verdade, ele surfou no pânico moral, demonstrando um aparentemente desordenamento social que tomou conta das universidades, escolas, igrejas, sexo, família, e, por fim, levando tudo isso até a política, em que, no fim das contas, seria ele, o salvador disso tudo. A meu ver, nada disso ocorreu. Ao contrário, sua irracionalidade só pôde fazer o conservadorismo continuar a ser ainda mais mal-entendido e mal-visto do que já era. Sua depreciação do cargo de presidente foi desmedida, seu rechaçamento contra as instituições, suas críticas à imprensa e seu excesso de autoridade e falta de decoro, foram, em verdade, um desastre para o bom entendimento do verdadeiro conservadorismo.

Dado o estado de inconsciência intelectual de Bolsonaro quanto à sua própria ideologia (se é que podemos chamar o conservadorismo de ideologia, já que, em verdade, ele é antes um estilo de vida, ou no caso de Bolsonaro, um instinto), temos, por conseguinte, o segundo ponto: não há em Bolsonaro nenhuma tendência em ser um estadista ordenador e unificador – creio que isso ocorra justamente porque no âmbito familiar e individual sua vida seja uma bagunça total (mas isso infelizmente não é uma exclusividade dele, e por isso podemos perdoá-lo).

Para ser honesto e expressar a minha opinião – que tem muito de conservadora, é preciso admitir – creio que somos governados por aquilo que merecemos: se temos hoje uma disputa tosca entre dois políticos ruins, simplórios e irracionais (sim Lula e Bolsonaro), é porque, simplesmente merecemos. Nós mesmos criamos esses monstros que em nada tendem à ordem, ao amor ou ao progresso, mas sim, apenas servem para estimular e inflar a disputa e a irracionalidade populista, onde um é o pilar de ataque do outro: Bolsonaro sem Lula é um pobre coitado, Lula sem Bolsonaro, idem. Maldito maniqueísmo.

Cabe aqui a seguinte reflexão: o povo que criou seus políticos, ou foram os políticos que criaram um povo ignorante, tosco e mente casto? A resposta é indiferente. Trata-se, a meu ver, de antinomia irresoluta. A realidade se apresenta como tal, e a verdade será sempre essa: temos no governo aquilo que merecemos, mesmo que ele seja injusto ou que tenha chegado ao poder por modos trapaceiros. Um povo dividido moralmente é um povo, antes, dividido politicamente – se há algo que o conservadorismo clássico ensina, é isso.

Para finalizar, aqui vão mais algumas palavras sobre Bolsonaro: o que ele mais fez nos seus quatro anos de governo foi disseminar o já referido pânico moral, ou seja, ele se concentrou muito mais nos adversários do que na união dos brasileiros ou dos preceitos legitimamente conservadores. Cumpriu, portanto, o papel de divisor e não de mantenedor da ordem – por isso, para mim, ele até parece um tanto revolucionário; em verdade, um revolucionário do avesso. O seu instinto conservador também é um instinto combativo – não necessariamente por ser um ex-integrante do exército, mas por ter traumas de infância, tal como todo mundo: Freud e os psicanalistas explicam! Seus traumas o fizeram um combatente que ataca para não ser atacado. Seu ataque é uma forma de defesa, expandindo inconscientemente a ideia de que única maneira de manter a ordem seria combatendo aqueles que, em sua concepção, são os reais desordenadores (o mesmo faz Lula e os petistas). O efeito, no caso de Bolsonaro, está sendo totalmente contrário e hoje ele se vê em uma situação calamitosa: perde feio nas pesquisas (as mesmas que ele mesmo acreditava em 2018 quando estava liderando, mas que hoje não acredita), e ainda passa por sérios riscos de ser derrotado já no primeiro turno.

Fico a refletir se Bolsonaro tivesse tido outro tipo de postura (ou se fosse outra pessoa um pouco mais decorosa, mas ainda conservadora), se então o Brasil teria se desalinhado tanto quanto se desalinhou. De tanto bater e atacar, Bolsonaro acabou unindo os atacados: ensinou-lhes sua própria política…

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