De nossa vida a pátria reivindica uma parte

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Ontem, pela primeira vez ocorreu de me interessar por um livro que tenho há muitos anos, mas que nunca havia lido. Trata-se da obra Os deveres de Cícero; famoso filósofo romano nascido no ano 106 a.C., que foi advogado e importante orador. Ao cabo de uma hora de leitura atenta quase não vi o tempo passar, porém, menos pelo interesse no texto (que basicamente versava entre a exposição da moralidade e das principais virtudes a serem cultivada pelo ser humano), do que por uma singela frasezinha da qual me incomodou profundamente. A referida frase, causa do meu espanto, segue exposta logo abaixo:

“Não nascemos apenas para nós [non nobis solum nati sumus], mas de nossa vida a pátria reivindica uma parte”. (Cap. VI).

Costumeiramente, gosto de assistir alguma avacalhação do noticiário político do dia enquanto lavo louça. Coloco o celular na janela, bem na frente da torneira da pia e vou lavando, copo por copo, prato por prato, panela por panela, e, bastante revoltado. Vez ou outra acontece de me cortar, ou de quebrar algo. Também já me ocorreu de derrubar o celular no buraco da pia cheiinha d’água; espanta-me ele ainda funcionar.

Ontem, no entanto, adotei um movimento um pouco diferente (erroneamente crente de que ficaria menos nervoso). Invés de política, decidi por assistir a uma palestra sobre Cícero, proferida por Maria Helena Galvão do canal de filosofia Nova Acrópole. A coisa toda pode ser resumida no extremo amor que Cícero tinha pela república romana, expressa na bonita, porém muito contestável ideia, de que quem não ama a própria pátria nunca poderá respeitar pátrias alheias.

Metade da frase de Cícero é summum perfectus! Sim, só alguém rude e sem escrúpulos poderia negar que “não nascemos apenas para nós” – porque é claro que temos de ter compaixão pelos outros também –, mas a coisa vira totalmente, e tenho de retorcer o estomago, quando aparece a segunda parte da frase, de que “da nossa vida a pátria reivindica uma parte”.

Está muito correta Maria Helena Galvão quando diz ser costumeiro que o brasileiro adore maldizer sua cidade, seu estado, seu país, e, que isso pode ser o primeiro movimento para que as coisas continuem indo mal. Ela é partidária do princípio de que a mudança das coisas que não gostamos nas nossas cidades têm de partir de nós mesmos, por isso, como Cícero, teríamos de amar nossa pátria e por ela querermos bem. Eu até compreendo que nisso possa haver alguma verdade, mas meu coração, lá no fundinho, quer mandar tudo isso de reivindicar parte da minha vida à pátria para os infernos. Explico abaixo.

Em primeiro lugar, cabe dizer que não pedi para nascer, tal como ninguém pediu. Em segundo lugar, eu não escolhi nascer brasileiro, tal como ninguém pode escolher onde irá nascer. Desse modo, pouca responsabilidade eu tenho em relação ao meu nascimento e ao lugar em que ele ocorreu. Eu poderia sim, aceitar a ideia de que há bons motivos para gostar do Brasil, mas chegar até a ideia de que tenho de reivindicar uma parte da vida para o bem da minha pátria parece algo muito mais profundo.

É claro, alguém poderá dizer (com razão) que se a minha pátria vai bem, as probabilidades de que eu também vá bem aumentam, mas me parece um absurdo pensar que reivindicar-me por conta da pátria seja algo necessário só por conta da crença (imprecisa e totalmente incerta) de que isso será refletido positivamente em mim. Parece que o que deveria ocorrer é justamente o oposto: é porque vou bem que a pátria tem de ir bem. Se “a pátria reivindica uma parte de minha vida”, como coloca Cícero, então eu tenho motivos de sobra para ter horroriza da pátria. As leis, a língua, a cultura e tudo que me foi imposto (que não dependeu da minha escolha, pois simplesmente nasci aqui), não são motivos suficientes para ela ser credenciada a reivindicar uma parte da minha vida. Meus pais possuem esse direito porque tiveram de limparem minha bunda, de me sustentarem e inclusive de me salvarem do mundo, no entanto, a pátria nada fez por mim além da sua obrigação e dever.

É dever dos meus pais e educadores me protegerem até eu ter idade suficiente para poder fazer isso sozinho, mas os meus pais estão lá de fato (são reais, de carne e osso), já a pátria, não passa de mera abstração. O que é a pátria? Pergunto para Cícero. Qualquer resposta que ele me dê será motivo para minha cólera e jamais encontrarei amor vindo dela. Noutras palavras, a pátria não me ama como meus pais e educadores me amam. Pelos meus pais, facilmente posso entender que eu tenha de reivindicar parte da minha vida, pela pátria, apenas o respeito (e isso já é mais que suficiente!). Reivindicar parte da vida implica em certo esforço e dedicação, já o respeito pode ser fornecido até mesmo com indiferença (no sentido estrito da palavra).

Eu deixo a pátria ser livre quando aceito suas leis, sua língua e sua cultura. Não vou maldizê-la e nem lutar para o seu mal, porém, não quero ser obrigado a lutar pelo seu bem e, além disso, quero esperar que ela aja comigo, dessa mesma forma: que ela não espere que eu vá contribuir para o seu desenvolvimento cultural e nem que eu tenha de me encher de orgulho por conta da sua bandeira e de sua sorte; também não quero que ela me impeça caso queira ajudá-la, tal como, não impedirei que ela me ajude. Quero ser livre para negá-la se assim eu quiser: para ir embora e nunca mais voltar, para ter uma nova nacionalidade e para julgar suas injustiças quando assim for preciso (tal como ela faz comigo, quando é preciso, por conta de eu ter sido injusto com outro compatriota).

Que a pátria cuide das suas obrigações para comigo e que eu cuide das minhas obrigações para com ela. Essa relação, no entanto, não tem de ultrapassar o respeito e principalmente, jamais chegar até o amor, que é um perigoso campo de risco que pode levar até o ufanismo – algo que só é possível para cabeças de vento (que a própria pátria não soube educar!). Para resumir a coisa toda, basta que se adote a máxima: do portão para fora é tudo dela, do portão para dentro é tudo meu.

“Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade”, diz o maior poeta brasileiro de todos os tempos, obviamente, Raul Seixas. Por isso, para mim, a maior e melhor maneira de amar é deixar livre. O Brasil continuará andando com as suas pernas depois da minha morte e também por isso não vejo nenhum motivo para ele reivindicar uma parcela da minha vida. Não cabe a ninguém (brasileiro ou não), amar ou reivindicar uma parcela da vida para o bem da própria pátria. O simples fato de conviver, respeitar e seguir os costumes e regras sem violá-los já é motivo bastante para aferir um pequeno e saudável orgulhozinho de ser inglês, holandês, paraguaio, chinês ou brasileiro.

Serei feliz pelo Brasil ir bem na política (basta que os governantes trabalhem mais e apareçam bem menos na mídia), também serei feliz se no futebol o Brasil ganhar a próxima Copa do Mundo, do mesmo modo, na educação, na saúde, na gestão publica em geral, tudo me agrada e em tudo contribuirei da melhor maneira que me for possível, no entanto, não me obrigue a ter que “reivindicar parte da minha vida” para isso caso eu simplesmente não queira.

Agora, voltarei a me revoltar com Cícero. Um abraço abrasileirado.

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