Do útil e do honesto

No púlpito da praça pública, discursa Cícero com eloquência...

quousque tandem abutere catilina

Na imagem: Cícero discursando contra Catilina

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Em menos de dez dias consegui dar cabo dos três tomos da obra Os deveres de Cícero, que juntos totalizam uma média de trezentas páginas. A minha edição conta com espaçamento e fontes bem grandes, além de possuir dezenas de páginas em branco posicionadas ao final dos capítulos, que são, no geral, bem curtinhos. Trata-se da edição Escala, tradução de Luiz Feracine.

Para seguir os mesmos padrões de divisão de Cícero, trato aqui, de mais um texto sobre o nosso romano, sendo, portanto, este, o terceiro e último sobre a obra Os deveres, tendo como seus antecessores, primeiro aquele intitulado “Da nossa vida a pátria reivindica uma parte” e segundo, o nomeado “A noção de verdade em Cícero”.

Como nosso romano foi um grande retórico e orador, um verdadeiro mestre da eloquência, que segundo Maria Helena Galvão (a mesma filósofa do canal Acrópole, já citada no primeiro texto): “é impossível estudar a arte do discurso sem considerar Cícero”. Portanto, tomemos novamente a licença poética para termos os filósofos ao nosso lado, bem próximos e íntimos. Daí a nuvem da imaginação dispersa no ar e dela surgir a imagem que proponho: encontra-se Cícero em posse de toda sua eloquência e poderio de fala, discursando a sua exposição no púlpito de uma praça pública. Imagine o leitor, que estejamos todos juntos novamente: eu, você, Montaigne, Schopenhauer e uma plateia de gente estranha. Estamos a ouvir atentamente o nosso romano que discursa sobre o útil e o honesto

— É útil envenenar o tirano, sim, quem poderia negar? Se ele causa o mal para o povo, se ele, inclusive, mata o povo, sim, é útil envenená-lo. Mas a atitude de envenenar é honesta? O mesmo vale para aquele que mente para seus compatriotas para se safar impune de seus atos injustos. É útil mentir em alguns casos. Aparentemente, sim, mas é honesto? É, com certeza, ainda mais útil que o pai ou a mãe roube para ter o que dar de comer para seus filhos, mas é honesto? Não. Não é honesto mesmo que se roube um injusto. Um mal não deve ser combatido com outro mal, principalmente se tratando de bons e virtuosos romanos que queiram alcançar o sumo bem. Sim! É certamente útil que se oculte os maus intentos, mas jamais que isso será honesto! Pergunto a vós, nobres filhos de Roma: “se pudesses fazer algo levado pelo desejo de riqueza, poder, domínio ou prazer e que ninguém viesse a saber e nem sequer suspeitar, ficando tudo oculto aos olhos dos deuses e dos homens, mesmo assim fá-lo-ias?” (Cap. XIV). A utilidade, meus amados compatriotas dessa imponente e singular República, só tem consistência quando implica honestidade. Para o homem virtuoso, portanto, nada é desejável fora da honestidade; e aqui vai outra pergunta decisiva: “o sábio, se estiver a ponto de morrer de fome, iria roubar o alimento de outro indivíduo para o qual aquilo é supérfluo?”, e a resposta está clara: “Não! De nenhum modo! Pois a minha vida não é para mim mais útil do que aquela disposição de espírito graças ao qual eu não prejudico a ninguém em proveito pessoal [neminem ut violem commodi mei gratia] (Cap. IX). Sim, pois é melhor a morte que considerar agir sem ser honesto!

Perfectum! Perfectum! O sábio basta a si mesmo! O seu melhor alimento é seu próprio intelecto! – da plateia, sem conseguir conter sua vontade, gritou Schopenhauer (caso o leitor não saiba, fique sabendo agora, o filósofo Schopenhauer realmente tinha o costume e a má fama de gritar em público e durante peças teatrais, portanto, tomemos aqui algum proveito disso).

— Cale-se alemão! – queixou-se alguém atrás de Montaigne. E antes que Cícero pudesse continuar mais alguém ergueu a voz:

— São todas asneiras que saem da boca desse romano ignóbil! Nihil perfectum est! – levantou-se o estrangeiro indignado e foi-se embora cuspindo fogo. Voltou para Londres para escrever e refletir um pouco mais sobre o utilitarismo e sua relação com o eudemonismo, ou seja, a busca da felicidade. Era Jeremy Bentham (ele queria entender se realmente não seria bom que o útil fosse feito em proveito da felicidade da maioria… ainda que às vezes incorresse em cairmos em certas desonestidades), no entanto, não nos importarmos agora com esse filósofo, inglesinho revoltado, é bom para ele e ainda melhor para nós. Continuemos a ouvir o nosso romano, que nos seduz não só pela eloquência e sagacidade do seu discurso, mas também pela honra e fama gloriosa; já que ele mesmo cria que o melhor resultado da oratória está em sintonia com a quantidade de glória do seu orador, em português claro e em modernês: damos mais ouvidos aos famosos e àqueles que possuem muitos seguidores nas redes sociais do que, por exemplo, aos mendigos e velhos, no entanto, não temos nenhuma garantia de que não aprenderíamos mais com esses do que com àqueles.

Prosseguia então Cícero:

— “Com frequência, ocorrem situações em que a aparência do útil perturba a mente. Não falo da hipótese de deixar de lado a honestidade em vista da grandeza da utilidade, o que, sem dúvida, é nefasto, mas, se é possível fazer de modo honesto, o que se configura também é útil” (Cap. XV). Nossos amigos não têm o direito de nos pedir para cumprirmos o útil em supressão do que é honesto, nem tão pouco na política ou na guerra podemos seguir de tal forma contra uma parcela do povo em proveito de outro, ou então, infringirmos contra nosso inimigo, uma regra que foi previamente estabelecida, como, por exemplo, atacar uma pátria vizinha aliada nos negócios, porém, não aliada na guerra; atacar um território de fuga dos idosos, mulheres e crianças; ou mesmo usar de estratégias desonradas como queimar na surdina da noite a cidade inimiga. “Se alguma coisa é desonesta, ela não comporta benefício real nem mesmo na hipótese de ser adquirido algo como útil. O ato mesmo de julgar algo como sendo útil o que é desonesto, já é calamitoso!” (Cap. XVII), portanto, “aqueles que avaliam todas as coisas pelo prisma do utilitarismo e das comodidades, não querendo que o honesto prevaleça sobre o útil, têm o hábito de comparar, medindo essas duas dimensões, mas os indivíduos de bem não agem de tal maneira” (Cap. III). Incorre em injustiça e desonestidade o vendedor que esconde o defeito de uma mercadoria, ou mesmo o homem de bem que não vê problema em não apontar ao comprador de sua casa os defeitos que nela só ele conhece. Vender pelo preço mais caro para lesar o comprador é atitude de gente má. Pior do que não indicar o caminho correto é indicar o caminho errado. Que coisa mais exótica do que um vendedor apresentar todos os defeitos da sua mercadoria? Os ensinamentos de Diógenes já apregoavam que esconder um defeito numa mercadoria é uma coisa e que manter silêncio sobre eles é outra. Esconder é quando se maquia o defeito no momento em que o comprador faz a vistoria, manter o silêncio é deixar evidente o defeito e colocar à prova a qualidade da vistoria do comprador.

Maldición! Manter silêncio também incorre em ser injusto! – gritou do meu lado o leitor.

— Pois mantenha silêncio e escute, do contrário, caíra você mesmo em ser injusto – respondeu serenamente o sábio Montaigne.

Continuou nosso romano, eloquentemente:

— Não há dúvidas que sim, meu caro estrangeiro do Brasil. Aqui expresso a opinião de Diógenes, que no fim das contas apenas acha exótico que o vendedor expresse de modo sincero os defeitos de sua mercadoria, o que de forma alguma eu estou em concordância. Não importa que seja exótico, importa que seja honesto. O defeito deve ser apontado pelo vendedor porque não sabemos da capacidade de vistoria do comprador, afinal, pode-se tratar de jovem pouco experiente nos negócios. Atire a primeira pedra, aqui, o romano ou estrangeiro que não tenha sido inexperiente nos negócios um dia; também aquele que não tenha filhos ainda inexperientes! Pois bem, não somos credenciados a lesar o vulgo e nem tão pouco mantermos indiferença e silêncio em relação aos defeitos de nossas mercadorias. Quem assim age, pessoa virtuosa não é. Além disso, perco muito mais do que ganho ao deixar de ser honesto para embolsar um pouco de dinheiro a mais, maquiando meu produto e escondendo seus defeitos. O indivíduo honesto nunca recorre às simulações. “Indivíduo bom é aquele que se torna útil para o outro sem a ninguém prejudicar; não só nunca é de utilidade proceder de modo iníquo, já que tal atitude fere a moralidade, como ainda sempre será útil assumir o modo de agir da pessoa de bem. Isso sempre é útil” (Cap. XXI). Por isso, percebam, povo da minha República amada; está iludido aquele que pensa que simular ou esconder uma injustiça incorre em uma utilidade para si ou para os outros. A moralidade nunca deve ser dissuadida e o homem de bem deve sempre reto agir”.

— Pois cá tenho uma pergunta – disse Montaigne de modo bastante introspectivo e reflexivo, tentando tirar de Cícero algo mais além de vento –, e quando se trata do caso de vendedor que desconhece o defeito do seu produto, mas já ocorreu do comprador tê-lo adquirido? E então acontece de passado algum tempo o comprador tenha dado conta que o seu produto já havia vindo com determinado defeito…

— Certamente é uma excelente dúvida, meu caro sábio francês. Nesse caso, ou devemos levar a agrura ao tribunal para averiguar se de fato o vendedor não tinha ciência do defeito do seu produto ou então as partes devem acertarem-se com uso da boa-fé, crendo o comprador na ignorância do vendedor e ressarcindo o vendedor a perca do comprador…”

Antes que Cícero pudesse continuar, gritou Schopenhauer, com o dobro da eloquência e com autoritarismo, que vale lembrar, entendia muito bem sobre economia, compras e vendas já que na infância e adolescência foi ajudante de seu pai, um rico comerciante.

— Em todo caso, Cícero, a justiça eterna será feita! A verdade não pode ser dissimulada, ela tem existência própria! “O mundo mesmo é o tribunal do mundo! […] O atormentador e o atormentado são um. O primeiro erra ao acreditar que não participa do tormento, o segundo ao acreditar que não participa da culpa!” (O mundo I, § 63). Isso já havia nos ensinado os antigos Vedas! “A responsabilidade pela existência e pela natureza deste mundo só o próprio mundo pode carregar, ninguém mais; de fato, como alguém poderia assumi-la?” (Senilia, 188). E a responsabilidade moral, por aquilo que eu não tinha ciência de que cometi, simplesmente não deverá ser punida além da conta. Erra o juiz que pune indevidamente o vendedor que tinha ignorância quanto ao defeito do produto, esse, deve apenas ressarcir uma parcela do dinheiro para cumprir equidade quanto ao defeito. No caso de errar o juiz, o vendedor será ressarcido pelo próprio mundo que é sempre justo e reto! O mundo nunca erra e o princípio de razão suficiente nunca falha!

— Cale-se, cale-se maldito alemão! Ninguém compreende o que diz! Já é a segunda vez que interrompe, além de que suas interrupções em nada acrescentam. Deixe nosso amado Senador Cícero discursar! – alguém contestou ao fundo da plateia.

— Volte para a sua maldita pátria onde as palavras longas são motivo de orgulho! – ainda gritou alguém.

— Malditos ignóbeis, maldita ralé, maldito povo romano ignorante! (sussurrou Schopenhauer emputecido).

Nosso romano prosseguiu:

— A prudência, meus caros, reside na escolha entre o bem e o mal; já a malícia, por outro lado, antepõe o mal ao bem (Cf. Cap. XXIII). É nosso dever escolher o bem, por isso, é totalmente justo todo o meu elogio à honestidade! Não há maior malícia do que dissimular a prudência, quando, na verdade, traz um coração nefasto no peito e cheio de interesses; coage-se o ignorante e maltrata-se o justo, tudo isso achando estar ganhando e crescendo. Sim, o bolso pode estar farto, mas a moralidade sem dúvida estará necrosada. O desonesto é um morto vivo, não importa se seja ele Alexandre o Grande ou Diógenes o Cão. Os problemas que ocupam Diógenes são para ele do mesmo tamanho do que aqueles que ocupam Alexandre.

— Quem quer que seja, pelos motivos supérfluos que tenha na vida, aja honestamente! A própria natureza tem repulsa pela desonestidade. Quem não repele a injustiça do mundo quando tem a oportunidade de fazer, então, age de maneira injusta. Não devemos separar as coisas que a natureza uniu. E sim, ela uniu a honestidade junto do homem virtuoso, quem quer que tente calcular sobre o proveito da utilidade da ação desonesta já comete um erro grave contra a própria natureza. Para o homem justo, portanto, “nada poderá parecer útil que não seja igualmente honesto; o desonesto jamais se torna digno, por mais que seja bem-sucedido, mediante a tramoia do ocultamente, de igual modo, aquilo que não é honesto não pode ser útil porque entra em conflito com a natureza [et repugnante natura]” (Cap. XXV).

— Povo de Roma! Utilidade nenhuma supera o valor da justiça! Tudo o que vier na posteridade que tenda a criar remendos nessa regra incorrerá em erro ínfimo de gente mal comungada, certamente, com amigos de poder! Jamais se esqueçam que mesmo quando as vantagens são grandes, não compensa prevaricar! Não sejais traidor da boa-fé! Pensai primeiro na moralidade do que no dinheiro! Primeiro em Roma do que em si mesmo! Primeiro nos outros do que no próprio bem-estar! Não deixem que suas deliberações sejam perturbadas pela ilusão da recompensa! Violar a justiça é violar a natureza, e quem assim procede por vezes nem mereceria viver! O aplauso do povo não deve vir a frente da boa índole, por isso, não se deve agir injustamente mesmo que isso leve até os aplausos da maioria, pois é bem melhor viver na obscuridade do que receber aplausos injustos e cheios de sangue! Exercitem a mente para aprenderem a descortinar o que é útil e o que é honesto. Nada é útil se antes não for honesto! Que se abra mão da boa reputação, mas nunca da honestidade! E que também na política esteja o útil identificado com o honesto! Que vá aos infernos os políticos de toda classe, de toda pátria, que antes agem em proveito próprio que por conduta honesta e justa. É vergonhoso não só para a moralidade, mas também para a honra e história do político. Agir desonestamente mancha eternamente a glória e biografia, pois mesmo que as ações injustas não se provem hoje, provar-se-ão amanhã, e mesmo depois de morto um político maldito e desonesto poderá ter sua imagem manchada! Recompunham a identidade entre o útil e o honesto! Que utilidade e honestidade tornem-se uma e mesma palavra! “Na hipótese de uma tempestade, dever-se-ia lançar ao mar uma carga, sacrificando um cavalo de elevado preço ou um escravo sem grande valor?” (Cap. XXIX); de um lado, temos a humanidade, do outro o patrimônio. E tendo de fato naufragado o navio e “se um indivíduo louco agarra-se à tábua de salvação, poderá o sábio apoderar-se dela? Poderia o comandante do navio retomar a tábua, já que lhe pertence?” (idem). Não, nada disso é permitido caso se aja por honestidade! “se houvesse uma única tábua de salvação, sendo os dois náufragos igualmente sábios, deveriam então ambos brigar para pegá-la ou deveria cedê-la para o outro?” (idem). Por mais cruel e difícil que a escolha justa possa parecer para a utilidade, deve-se ceder para o outro em caso dele ser o mais novo e tenha mais tempo e méritos para contribuir à república. Por isso, não haverá disputa.

 — E lanço-lhe ainda a seguinte questão: “se um pai pretende tornar-se tirano, se pretende trair a pátria, o filho terá de ser conivente?” (idem). De modo algum. Nesse caso, é dever do filho convencer o pai do contrário, e, caso não consiga, tem de acusá-lo e entregá-lo para seus outros compatriotas que realmente amem a república, pois é preferível a salvação da república que a salvação do pai, principalmente se tirano for!

— Ainda quero lhes acrescentar que há coisas que parecem honestas, mas que com o tempo se revelam não serem. Com elas é preciso ter cuidado. O entendimento que temos sobre as coisas e sobre a justiça estão sempre se alterando de acordo com as verdades prováveis que vão aparecendo, “nós não temos uma noção verdadeira e genuína de justiça nem uma imagem sólida e acabada do direito… tanto de uma quanto da outra desfrutamos de um mero esboço” (Cap. XXIII). Há acordos, portanto, que podem ser quebrados, pois podem as circunstâncias externas, tê-los colocado em situação de desonestidade, em caso de a eles cumprirmos. Por isso, a nossa palavra só tem validade desde que siga o procedimento da justiça e da honestidade. Não devemos recear retroceder nas nossas promessas injustas. Fazer isso é sinônimo de belíssima virtuosidade. A prudência nunca é errônea; se se apresenta errônea, é porque era, na verdade, uma ilusão: estava-se tendendo ao mal, porém, crente de que tendia ao bem! Atentem-se a isso!

— Aqueles que almejam a coragem e a grandeza, não devem temer o mal, tão pouco terem apreço além da medida pelas coisas humanas. Ulisses, como nos narra o poema épico de Homero, foi homem que creu ser útil negar a carreira militar, portanto, simulou-se de louco para evitar ajudar os seus próprios compatriotas gregos. Mas de que vale, encontrar utilidade no refúgio da mulher amada e nas brincadeiras dos filhos enquanto a pátria está sendo atingida pelos inimigos e pondo em risco todos esses belos prazeres? A coragem e a grandeza, meus caros, são virtudes úteis por si mesmas, engana-se quem pensar serem qualidades de baixa importância, tal como Ulisses. Mais prejudica a pátria aquele que nela covardemente se refugia do que aqueles que por ela dão a própria vida na guerra justa. Todos procuramos alcançar o que é útil e ninguém é capaz de deixar de querer as benesses da utilidade, mas, é preciso dizer mais uma vez: a utilidade só se encontra no mérito, no decoro e na honestidade; por isso, o nome da utilidade não deve ser exaltado além da medida.

 — Ainda quero dizer, já almejando o fim do meu discurso, que os juramentos que feitos tendo Deus como alvo devem ser mantidos até que sejam cumpridos. Não para evitar a sua ira, mas sim para demonstrar-se justo e fiel. Se na guerra, por vezes temos de manter promessas feitas aos nossos inimigos, por que então não manteríamos as nossas promessas feitas a Deus? Há inimigos que são legítimos, e há os que não são, por exemplo, os piratas. Jurar com a língua, como bem nos diz Eurípedes, é comprometer a alma. Não se deve cair em perjúrio e nem tão pouco em torpeza, mesmo com os nossos inimigos, sejam aqueles das guerras ou mesmo os nossos inimigos políticos e vizinhos de cercanias. As coisas são honestas não porque úteis, mas sim úteis porque honestas! É totalmente útil que se seja justo mesmo com o inimigo, pois o que é útil emana da honestidade. Decoro, ordem, modéstia, continência e temperança, “poderia existir algo de útil que esteja em contradição com a harmonia existente entre essas virtudes?” (Cap. XXXVIII), “será que a prudência busca prazer em tudo?” (idem), evidentemente não, nenhuma opinião poderia ser mais degradante! “para aqueles que consideram a dor como algo supremo, que lugar ficaria para a coragem que é o desprezo de todas as dores e fadigas?” (idem). Nem sempre ser honesto converge com a ideia de felicidade ou prazer, no entanto, sempre converge com a utilidade. Quem é honesto, é, por conseguinte, útil!

Ovacionado pela glória recebida nos aplausos e gritos frenéticos do público, Cícero terminou seu discurso e se retirou para junto de seu amigo Ático. Eu, o leitor, Montaigne e Schopenhauer cá continuamos a nossa conversa…

— Cícero parece estar coberto de razão, porque certamente bem poderá se encher de remorso a consciência moral daquele que em proveito da utilidade e do bem-estar pessoal engana e age injustamente. Se bem que quem assim age, já tem em seu caráter a maldade e isso ninguém pode mudar. Devemos ser punidos por aquilo que somos e não necessariamente por aquilo que fazemos [operari sequitur esse]. O próprio remorso já é um peso danado na consciência – falou primeiro Schopenhauer.

— Tendo em vista a honestidade em proveito da utilidade, como poderá o extremo vulgo sentir remorso pelas suas ações se tudo que faz tem sempre em mente a sua própria vantagem e bem-estar? – pergunto eu.

— Descubra – respondeu o alemão.

— Certamente a dúvida é interessante. Como podem os índios da América, tão puros e carentes de moralidade, sentirem o mesmo remorso do que nós, os cristãos da Europa? – questiona Montaigne.

— O único cristão aqui é você, caro nobre francês – redargua Schopenhauer.

Pois bem, eis aí um problema grave. Que responda o leitor como superá-lo. Como podemos educar o vulgo para que ele aja honestamente? No mais das vezes, esse está muito mais preocupado com a sua sobrevivência do que com a retidão das virtudes – além disso, outros tantos problemas explicam sua vulgaridade.

Virtudes? Ele nem ao menos sabe o que são elas. A própria palavra virtude, para ele, não passa de uma agrura vazia de significado. Remorso? Eles até podem senti-lo, mas será mesmo que isso é suficiente para restituir e frear o uso desmedido da utilidade em proveito da honestidade? Quiçá quando o vulgo alcança postos de poder; aí, sim, toda a república está lascada.

Quer dizer então que estou defendendo que o vulgo não pode ter representatividade política, que ele não possa se candidatar nem ao menos votar e que dessa forma defenderíamos a república da possibilidade de que ele alcançasse cargos de poder? De forma alguma. Nada seria mais tirano e menos liberal. A representatividade política é necessária. Todos têm de ter o direito de falarem e de serem ouvidos e não nos cabe querer cortar os males pelos galhos, mas retirarmos-lhes a raiz inteira.

Antes, o que deve ser feito, é que a honestidade cresça a tão altos padrões que possamos enfim sentir prazer em ajudar a converter o vulgo em pessoa minimamente esclarecida, em alguém capaz e livre intelectualmente; porque, sim, a vulgaridade é uma prisão intelectual, donde, o próprio vulgo é tanto o prisioneiro quanto o carcerário, pois crê nas suas convicções como se fossem as únicas verdadeiras. A república dos vulgos será governada pelo vulgo. É uma bola de neve. Como sair disso? Eu não sei. Talvez nem Cícero, o nosso querido romano… Com ele, aprendemos bastante, sim, não há dúvidas quanto a isso.

Então, disse Montaigne:

— A filosofia de Cícero ainda me parece “verborragia e ostentação” (Ensaios I, XXXIX).

— Tu que cresceu educado até os seis anos exclusivamente em língua latina, tal como demonstra no ensaio “sobre a educação das crianças” deves saber o que fala. Os textos de Cícero foram certamente cultivados na sua educação desde a mais tenra idade – respondi ainda apaixonado pelo discurso de Cícero que acabará de ouvir e dedicando algum desdém pela opinião de Montaigne.

— A linguagem que ele emprega no texto difere do mérito que tinha como orador. Por isso, no meu ensaio que teço “considerações acerca de Cícero” (Cf. Ensaios I, XL), indico ser “grotesco e injurioso procurar valorizar alguém em lhe atribuindo qualidades, por mais louváveis que sejam em si, que não convenham à sua condição social; elogios somente são honrosos quando se acrescentam aos que a pessoa merece pelas qualidades adequadas à situação que ocupa”. Ao que me parece, Cícero foi tantas coisas que tenho de reservar algum desdém pela linguagem que emprega no texto. Afinal, qual é a posição que ele ocupa? Como orador eu lhe reservo algum respeito, mas lê-lo, por vezes me embrulha o estômago. Por vezes quem fala é o Senador, outras, o advogado, o pai, o filho, o irmão, mas, e quanto ao filósofo? Onde está?

Calei-me, porque fui abatido. Montaigne tinha alguma razão. Cícero é o mestre da eloquência, mas sua filosofia é certamente um pouco confusa.

— “A condição para ser sábio é viver em um mundo repleto de loucos” (Senilia, 140) – falou Schopenhauer, mais para si do que para nós.

— Qual o problema agora alemãozão? – disse Montaigne.

Schopenhauer olhou firmemente nos olhos de Montaigne e apontou-lhe o dedo na cara.

— Tu és um filosofinho barato, tanto quanto Cícero. Que me importa que Cícero seja ora isso, ora aquilo? Tu não fosses também prefeito de uma cidadezinha da França? Reizinho num castelo? Pois, lendo seus textos, quem fala é o lorde da montanha, o prefeito ou o filósofo? Ora, se Cícero dedicou sua velhice para escrever, o mesmo fizeste tu. Perderam ambos, a melhor fase intelectual da vida, que evidentemente, é a juventude. Tudo que escrevemos antes dos trinta é o prelúdio do que iremos sustentar na velhice. Sem nenhum pudor eu poderia acusá-los de senilidade, tal como Kant, quando na velhice compôs aquela porcalhada da Doutrina do direito… Aliás, você, Montaigne, nem se quer pôde conhecer Kant, por isso, ganho muito pouco falando com vossa senhoria.

— “Os sábios revelam não raro o defeito de exibir seus conhecimentos doutorais e andar a espalhar seus livros por toda a parte” (Ensaios III, III), e, pelo que sei, por mais que tenhas escrito muito na juventude, nunca que seus livros venderam, além de que foi justamente seu livro escrito na velhice que lhe deu alguma fama, sim, aquele título esquisito… Parerga e paralipomena – respondeu Montaigne, calmamente. Schopenhauer entrou em estado de cega cólera.

— Acalmem-se malditos cabrões. Voltemos ao problema que importa – disse eu.

— Nenhum problema importa muito – falou Montaigne.

— Nisso estamos de acordo francesinho – respondeu Schopenhauer.

— Tenho de concordar também – terminei com indiferença e então dispersamos.

Ao leitor, um abraço honesto, pouco útil, porém, republicano.

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