O andarilho

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O ANDARILHO

Antonio Alves

Originalmente escrito em agosto de 2019

Revisado em setembro de 2022

Finalidade: peça de teatro

 

Prelúdio

Há sempre uma gente que dita o significado do que é a loucura. Ao que tudo indica, são os ditos e considerados normais. Como de praxe, eles são a maioria e agem de modo a reprimirem tudo aquilo que simplesmente pareça demasiado excêntrico e diferente do que eles acreditam serem atitudes e gestos ideais para um mundo mais bonito. Um mundo mais bonito? Que diabo seria isso afinal? Eles (os “normais”) se esqueceram, ou, na verdade, nunca souberam que a beleza é puramente subjetiva. Eles crêem na ampliação de uma paz normativa que, transvertida de angústia, sorrateiramente age de modo coercitivo para reprimir tudo aquilo que na perspectiva deles mesmos é considerado loucura. Em cada época a loucura foi entendida e compreendida diferente, tanto num sentido moral quanto num sentido clínico. Todo tipo de gente já foi considerada louca por aqueles que ditam as regras da normalidade, sejam eles doentes venéreos, prostitutas, fleumáticos, gênios, homossexuais, hereges e inclusive moradores de rua. Toda essa corja de gente estaria unida e abraçada no mesmo pacote dos insanos. No entanto, é absurdo ser considerado louco por simplesmente ser quem se é ou por meramente ter que encarar o mundo com as únicas armas que se tem.

Os ocorridos que se seguem exaltam as perspectivas daqueles que são considerados loucos por aqueles tidos como normais. Cenário: cidadezinha do interior do Brasil durante a segunda metade do século XIX, precisamente, pouco antes da abolição da escravidão em 1888.

 

I

 

Frederico, dono de uma grande fazenda produtora de cana-de-açúcar e um dos homens mais ricos e poderosos daquelas bandas, havia sido abandonado por Carolina, mulher que há muito tempo cortejava e que prometerá dar todo seu amor. O jovem principesco sempre andava cercado por muitos jagunços. Todos eles fortemente armados até os dentes, com espingardas, cassetetes e chicotes. Entre os jagunços, um lhes era o preferido, chamava-se Belchior.

Depois de muito Frederico anunciar nos classificados dos jornais sobre o sumiço de Cojaque, um dos seus escravos mais fortes, mas também um dos mais espertos e encrenqueiros, finalmente lhe chegou sorrateiramente ao pé do ouvido notícias do negro. Foi numa de suas idas corriqueiras as mercearias que ele escutou atento a conversa de dois velhos que falavam alto próximos da porta de entrada:

— Dizem que os negros fujões estão se enroscando num quilombo que tem se formado aqui por perto.

E o outro respondeu:

— Sim, já estou sabendo e parece que o nome do líder deles é Cojaque, só um negro poderia ter um nome escroto desses.

Sem fazer alarde, Frederico virou numa só golada seu copo de pinga, deixou o dinheiro no balcão e saiu determinado. Foi ter com Belchior, seu soldado preferido. Sem delongas, o capanga pôs a traçar o plano:

— Hoje a noite reúno todos os homens e facilmente vamos encontrar o esconderijo dos negrinhos, traremos Cojaque para que o senhor lhes dê uma bela lição. Isso é uma promessa Capitão.

Belchior era o máximo que Frederico conhecia sobre a verdadeira amizade. Todos seus problemas, tanto os da fazenda, quantos os pessoais eram transmitidos a Belchior em primeira mão. Normalmente o jagunço ouvia sem emitir sua opinião, apenas se prostrava a dar razão ao seu chefe e dividir com ele alguns cigarros e doses de cachaça.

Enquanto na calada da noite, o Capitão e a tropa seguiam pelas vielas da cidade em direção a floresta a fim de encontrarem o quilombo de Cojaque, o negro fujão, Belchior atreveu-se em perguntar:

— E Carolina Capitão?

Frederico ficou feliz com a pergunta, pois precisava tirar de si os seus anseios:

— Não me perdoa de jeito nenhum.

Belchior sugeriu:

— Compre flores, mulheres gostam de flores.

— E por que é que mulheres gostam de flores, Belchior?

— É uma convenção social. Mulheres gostam de flores e…

Antes que o jagunço terminasse de falar, viu caído ao chão um mendigo. Chutou suas pernas e mudou seu discurso:

— Essas coisas estão sujando a cidade.

Frederico respondeu ignorando o ocorrido:

— Na verdade, penso que as mulheres preferem ouro.

O andarilho no chão, que acabará de levar o chute, levantou num salto e pôs-se a rir dos dois homens.

— Não pude deixar de ouvir o papo de vocês. Flores e ouro? Duas inutilidades! Mulheres não gostam de nada disso, afinal as flores morrem rápido e o ouro… O ouro não passa de um metal, não fossemos nós, os homens para lhe atribuir valor, por que ele haveria de valer mais do que qualquer outro metal?

Belchior, dando de ombros e sem entender o porquê seu chefe havia diminuído o passo para ouvir um andarilho, respondeu em tom de militar:

— Cale-se. Não sabes o que diz. O ouro tem um alto valor porque é raro.

O andarilho, ainda debochando do soldado, tirou de seus embornais uma garrafa de pinga e pôs-se a bebê-la no gargalo:

— E por que soldado, que alguém como eu, que sou mui raro, não tenho valor algum para ninguém? Desde quando ser raro é ter valor?

Sem saber o que responder o soldado ameaça pegar o cassetete da braguilha. Frederico intervém a atitude de Belchior, então, conta ao andarilho que foi abandonado por Carolina e lhe pede conselhos:

— Então mendigo, qual sua opinião? Dou ouro ou dou flores?

O andarilho sem pestanejar respondeu na lata:

— Não dê nada além de amor. Os presentes apenas iludem os sentidos e é preciso agradar o coração e não os sentidos. Se der lhes ouro ou flores, ela entenderá que está tentando comprá-la. Para o coração, ouro e flores não possuem valor algum. Se fosse assim, pobre não se casava.

Frederico deu razão ao andarilho:

— Você está certo, não darei nada e não farei nada. Na casa de Carolina já existe um jardim cheio de flores e ouro ela também já possui em abundância. Seria só mais um gasto atoa, mais um presentinho sem significado.

O andarilho ainda respondeu outra vez:

— É isso mesmo, você começou a entender. E, além disso, moças ricas não são tão exigentes quanto as moças pobres. As ricas são mais zelosas, as pobres já são mais dissipadoras, querem tudo porque nunca tiveram nada, as ricas sempre tiveram de tudo, daí não se agradam tão facilmente.

Belchior interveio:

— Até agora não entendo porque está dando ouvidos a esse infame Capitão.

O Capitão pediu que Belchior ficasse quieto e ordenou que a tropa seguisse. Ao mesmo tempo saiu a resmungar sobre a duvidosidade que tinha em relação ao seu amor por Carolina:

— Não sei se a amo tanto assim!

O andarilho se deitou novamente em seus cobertores e jornais e resmungou sozinho, mas diferentemente do Capitão, ninguém ouviu:

— Qualquer coisa, estou por aqui, bebendo e pensando sozinho…

 

II

 

Normal na vida de Carolina era passear durante os fins de tarde com sua amiga e professora Ester. Esses passeios aconteciam no mínimo duas vezes por semana. Naquele mesmo dia em que Frederico e sua tropa saíram com objetivo de encontrar o quilombo, elas estavam na rua e se sentaram em um banco próximo ao andarilho. As duas moças não demoraram a perceber a sua presença. Papo vai papo vem e dado momento Carolina perguntou:

— E suas aulas, Ester? Como estão?

— Para ser sincera estão horríveis. Acredita que dia desses tive que dar expulsão a um aluno? Ele teve a audácia de abaixar as calças e mostrar o querubim no meio da sala de aula.

Antes mesmo que Carolina pudesse demonstrar sua indignação, as duas levaram um grande susto. O andarilho deu um grito em forma de gargalhada que foi estarrecedor. A voz claramente curtida de cachaça, não só exalou sua rouquidão, mas também o cheiro insalubre.

— Ester, o bêbado nos escuta. Vamos daqui!

Mas antes que as moças pudessem correr, o homem levantou rapidamente, sempre com sua garrafa nas mãos e se pôs a falar:

— Acalmem-se, acalmem-se moças, não faço mal a ninguém além de mim mesmo. Estava aqui deitado, tentando pegar no sono, mas confesso que não consegui deixar de ouvir a conversa das madames. Acho que posso explicar o fenômeno do garoto que mostrou o… Como é que você disse? Querubim?

Carolina insistiu mais uma vez:

— Vamos Ester, vamos embora!

Ester não deu ouvidos:

— Acalme-se, deixe o homem falar.

O andarilho, percebendo que chamou atenção de uma das moças, soltou o verbo:

— É a glória moças. É tudo uma questão de glória! O jovem que quer chamar atenção corre atrás da glória, porém, ele não tem a menor ideia do que é a glória. As coisas que dão sentido para a nossa conduta, sempre são desconhecidas por nós mesmos. A glória é um escudo, algo que serve para falsear o nosso lado perverso. Nenhuma glória se sustenta por muito tempo, no caso do menino de sua sala de aula moça, o seu lado perverso não era mostrar o seu querubim. Mas sim o seu lado vazio, afinal, quem não pode aparecer pelo que tem na cabeça encontra outros meios de fazê-lo e a recompensa disso é a glória que recebe de outras pessoas.

Ester respondeu não para o mendigo, mas para sua amiga:

— Até que gostei dele.

O andarilho, sem mais delongas, ajoelhou-se diante de Ester e estendeu a sua mão:

— Muito prazer. Chamo-me João da Silva, mais conhecido como Lelé, ao seu dispor Madame Ester. Confesso que não pude deixar de reparar em seu nome enquanto vocês conversavam. Aliás, ele é muito bonito.

Ester ficou vermelha, mas ainda assim conseguiu responder:

— Você parece ser um homem bem inteligente. O que justifica sua deplorável condição?

— A glória, dona Ester, com certeza, a glória. Sou o mais glorioso dos homens, o mais insensato e também o mais estúpido. Sou tudo de ruim, menos ladrão, malfeitor e assassino.

— Não fales assim dê si mesmo.

— Isso é porque tu ainda não me conheces o suficiente.

Carolina então insiste em obter respostas na pergunta que sua amiga já havia feito:

— Sem mais poesias! O que justifica sua condição? Como você se tornou o que é?

Lelé, sem hesitar, respondeu:

— E o que eu sou? Se alguma de vocês me conseguirem dizer ficarei muitíssimo feliz.

Ao tempo que o dialogo entre os três acontecia, Frederico, Belchior e a tropa de jagunços reaparecem na rua e trazem consigo Cojaque e mais meia dúzia de negros. Eles se debatem e fazem de tudo para se livrarem, mas sem sucesso. Frederico, ao perceber que Carolina estava ali, pôs a se gabar de sua conquista:

— Carolina meu amor! Você por aqui! Como eu havia lhe dito, consegui prender Cojaque, veja só, é esse infame aqui. Ele não perde por esperar a surra que levará quando voltarmos. Carolina, respondeu com muita raiva:

— Primeiramente, não me chames de “meu amor”! E segundo, tu sabes bem que acho essa sociedade escravista uma grande vergonha! Em alguns países da Europa e na América do Norte, já dizem os jornais que a escravidão está totalmente abolida! É um absurdo nós ainda agirmos assim. É por essas e outras que esse país não muda nunca! E é por isso Ester – diz ela agora se direcionando para a sua amiga – que seus alunos não te respeitam, eles pensam que poderão ter escravos o resto da vida.

Lelé, entrando na conversa, se fazendo de bobo, acaba desvendando o óbvio:

— Então você é a Carolina que mais cedo esse homem passou aqui e cogitava lhes comprar flores e ouro?

Frederico rapidamente disse bastante bravo:

— Calado mendigo, estás louco?! – protestou Frederico.

Carolina, curiosa, quis saber o resto da história:

— O que mais ele disse?

— Este homem, ainda a pouco, passou por aqui totalmente descrente de que você o perdoaria, e ainda antes de ir embora com a sua tropa saiu resmungando que não tinha certeza se te amava.

Carolina se colocou a dizer com firmeza:

— Não olhe mais para mim, Frederico Bordian Cerafim! A partir de hoje o que tivemos não temos mais e o que fomos não somos mais. Até tenho que te dizer que já até gosto de outro.

— Maldito mendigo. Se tu fosses negro te levaria agora mesmo e dar-lhes-ia uma surra. Só não te levo por respeito às moças. Fique esperto que cedo ou tarde lhe pego por aí!

Muito nervoso e envergonhado, Frederico se retirou com seus jagunços, com Cojaque e os escravos recuperados que clamavam por misericórdia, mas Frederico e seus homens gritavam em alto e bom-tom enquanto os açoitavam: “se o mundo não tem pena de vocês, seus escravos malditos, porque nós haveríamos de ter?”.

As moças logo após a triste cena despedirem-se do andarilho e também partiram. Sozinho mais uma vez, Lelé colocou-se a deitar no chão enquanto resmungava:

— Pobres homens… Pobres homens… Apesar de eu passar frio e fome, não sofro por influência de poder algum. A polícia não tem motivos para me prender, os senhores de escravos não veem interesse na minha força de trabalho… Certamente tenho sorte por ser branco, mas então, um andarilho branco como eu vale mais ou vale menos que um negro escravo? Qual será minha função no mundo? Descubro amanhã… Afinal, como é sabido, um dia ensina o outro.

 

III

 

Na manhã seguinte aos fatos que se passaram a professora Ester cruzou com Lelé numa das ruas do centro da cidade. O andarilho segurava em suas mãos uma garrafa de pinga enquanto caminhava cambaleante e despretensioso por entre pessoas apressadas, elas tentavam comprar a nova edição do jornal que havia acabado de chegar às bancas e mercearias.

— Você novamente por aqui, João Lelé. Conhecemo-nos ontem, lembra-se?

— E como eu poderia me esquecer de ti, dona Ester?

— Pareces triste.

O andarilho levantando a sua garrafa de pinga respondeu:

— Eu triste? Por que estaria?

— Diga-me tu, vejo nos seus olhos que estas tristes. Venha, sente-se aqui.

Então se sentaram. Ela inclinava-se para ele numa posição de complacência e empatia, ele com olhar cabisbaixo, embriagado, exalando fedor e dando golinhos na pinga, jamais perdia seu humor. Isso lhes era uma espécie de escudo contra a sua terrível realidade.

— Deve ser a fome, deve ser o frio, deve ser a falta de saúde. Sem saúde ninguém é feliz e contente, além do mais, eu não tenho mais nada para me preocupar além da saúde. Já percebeu que é mais feliz um mendigo com saúde do que um rei doente?

Ester, apesar de não compreender exatamente o motivo pelo qual estava se preocupando tanto com o homem, não pôde perder a oportunidade de dar-lhes um pitaco:

— Pois com a saúde você parece não se preocupar nenhum pouco, pois vive bebendo! Por que bebes tanto assim?

— Bebo para suportar o tédio e para me esquecer da fome e do frio que me causam dor. Não são motivos justos?

— E como consegue dinheiro?

— Às vezes peço aos de bom coração, às vezes limpo quintais de senhorinhas. Na verdade, eu não consigo dinheiro, é o dinheiro que me consegue. Sabe o que penso madame Ester? Só não morri ainda porque não devo ter feito tudo o que deveria. Uma vez vi um amigo morrer. Vi com meus próprios olhos dona Ester. Estávamos eu, ele, e mais nossos companheiros… Um bando de cachorros fedorentos! Sabe o que ele disse? Quais foram suas últimas palavra?

— Diga logo homem!

— Ele disse: “morrer não dói”, aí eu disse, “você ainda está vivo, como sabes?” ele respondeu como num último impulso de vida: “porque já posso ver a morte acenar para mim… Quando tudo está consumado… quando já fizemos tudo o que deveríamos ter feito… Morrer não dói, morrer é bom… Adeus meu bom amigo”. E assim ele se foi.

— Bom… Diria que isso é o que significa morrer com honra.

— Honra? (gargalhada alta e sarcástica) isso é tudo que honra não é madame Ester, me desculpe mais a senhorita está erradíssima.

— Pois então, o que é honra?

— Ora, a honra é o oposto da glória! A glória se luta para conquistá-la, a honra é apenas o esforço que fazemos para não perder a glória. Honra é tudo o que meu pobre amigo Zé Biruta não tinha, justamente porque não tinha glória nenhuma para sustentar.

— Seus discursos, suas reflexões… São tão admiráveis… Minha amiga Carolina, se me visse falando com você, diria que sou louca… Diria algo do tipo “como pode uma professora aprender algo com um mendigo?”. Mas, diga-me João Lelé, pois ainda não estou convencida, como você se tornou o que é?

— Então, diga-me primeiro, porque se interessou em mim? És algum tipo de religiosa? Há muito tempo que alguém não me trata tão bem assim.

— Não, por quê? Você pensa que é preciso ter religião para ser bom?

Por impulso, Lelé colocou suas mãos nas costas da moça e lhes fez um leve carinho:

— Não é nada disso, é que você é um anjo.

Logo em seguida, caindo em si e percebendo seu atrevimento somado a sua condição insalubre, pôs-se a pedir perdão por ter encostado suas mãos sujas nela. Ester não queria desculpas, ela gostou de ser tocada pelo homem, então, fez que não ouviu e decidiu em tomar uma atitude.

— Vamos, me dê essa maldita garrafa de pinga. Ao menos na fome e no frio posso lhe ajudar, quanto ao tédio não sei o que fazer, venha, levante-se, lhe darei comida. Há um hotel próximo daqui, ainda hoje lhes digo: tomaras banho, comerás até que sua barriga esteja cheia e dormirás bem. Não aceito nenhuma recusa. Eu ainda gostaria de saber como você se tornou o que é. Como alguém inteligente como tu podes ter chegado a tal condição, como alguém como tu vive assim?

— Contarei, mas antes preciso confessar que ontem, quando nos conhecemos, menti para você.

Assustada, ela respondeu simplesmente:

— Mentiu?

— Quando te disse que não roubava. Às vezes eu roubo. Roubo livros.

Sem se aguentar e achando a situação demasiadamente excêntrica, Ester começou a rir e confessou que também já havia roubado livros. Então ela o ajudou a se levantar e o levou para o hotel próximo dali. Alugou um quartinho por uma diária após enfrentar os olhares preconceituosos que o dono do estabelecimento lançava ao ilustre hóspede, e enfim, despediu-se de Lelé, deixou a conta paga e foi-se embora.

 

IV

 

Carolina, já arrependida e sem saber bem o porquê havia se sujeitado a mais uma vez dar uma chance a ouvir Frederico, sentou-se no banco da praça central e aguardava o rapaz que já estava cinco minutos atrasado do horário combinado.

Enquanto aguardava, ficou tentando compreender o porquê simplesmente não recusou quando o jagunço de Frederico foi lhes notificar sobre as vontades de seu Capitão em encontrá-la na praça central. Concluiu que talvez tivesse medo de dizer não ao homem devido a sua condição de militar. Montado a cavalo, espingardas nas costas, chapéu tapando metade dos olhos. Parecia perigoso recusar qualquer coisa para alguém assim, então ela simplesmente aceitou. “Por que vim, por que vim?”, eram seus pensamentos.

Mais cinco minutos de espera angustiosa e reflexões sobre um futuro ao lado de Frederico, alguém tão rude e tão diferente dela, avistou que do outro lado da praça vinha ele. Estava vestido elegantemente e trazia nas mãos um buque de flores.

— Desculpe o atraso, os escravos estavam armando uma nova rebelião…

— Escravos e rebeliões. Você só sabe falar dessas coisas, não sei porque vim.

— Aceite como desculpa, essas lindas rosas, eu mesmo as escolhi, uma a uma.

Ela sabia que não era verdade, pois antes de chegar à praça viu que na rua de trás havia um homem vendendo flores, mas decidiu não contestar a futilidade.

— São lindas, obrigada.

Frederico insistia em dar luz aos seus problemas:

— Não tem como fugir dessas coisas, Carolina, tudo funciona assim. Não tenho culpa, é a forma como vivemos. Por que tens tanta pena dos escravos? Não fossem eles para fazer o trabalho duro, quem os faria?

— Não sei quem os faria, o que sei é que não é justo que homens sofram apenas porque são negros. Aliás, eu sei quem os faria. Você!

— Não deixe que qualquer pessoa ouça você dizer isso. A maioria não entenderia. Para ser honesto nem eu entendo.

— Se não me entende, por que ainda assim vive me cortejando?

Ele, acariciando os ombros dela, respondeu suavemente:

— Talvez porque você também goste de mim.

— Não gosto de gostar de alguém como você. O problema é que todos são semelhantes a você.

— É uma sociedade escravista, o que você esperava?

Carolina levantou-se num impulso e enquanto se distanciava dele foi dizendo:

— Vou embora, não venha mais atrás de mim. Não entendo porque sou tola de continuar vindo nesses encontros com você!

Frederico, insistente, correu atrás da moça e ultrapassando-a pôs-se a ajoelhar-se em sua frente e abriu uma caixinha contendo uma aliança de ouro:

— Espere Carolina, por favor, espere meu amor! Case-se comigo… Prometo te amar por toda a minha vida.

Carolina, sem pestanejar, deu no homem um tabefe de cima para baixo que o estralar entre a mão e o rosto pôde ser ouvido por toda a praça. Por um segundo as pessoas à volta paralisaram-se e os pássaros das árvores voaram para longe. Muito nervosa, ela gritou antes de ir embora:

— Teu maior sonho, Frederico, é ser um escravo e eu não tenho nenhum interesse em ter um escravo. Não quero suas flores e nem o seu anel idiota, vá embora e não me adule mais.

 

V

 

Numa madrugada, até então bastante comum, Lelé dormia num banco de uma das vielas da cidade. Foi acordado ao ouvir gritos estéricos que pareciam se aproximarem cada vez mais. Escondeu-se rapidamente atrás do banco e observou a cena. Era Cojaque junto de uma dúzia de outros negros que mais uma vez haviam armado uma rebelião de sucesso. Cojaque proclamava em alto e em bom-tom, de forma furiosa e sem nenhum medo de ser ouvido:

— “O que faz um homem ser o que ele é?”

Os outros negros simplesmente levantavam as foices que traziam em mãos e gritavam furiosamente confirmando a concordância: “Ah!”.

— “Nós, nós somos a soberania, os reis de reino nenhum!”

— “Ah!”

— “Viva a liberdade! Viva a nossa raça! Viva a nossa soberania! Viva a nossa cor!”

— “Ah!”

— “Fujam, fujam! Conquistem o mundo, pois ele é nosso!”

Os negros saíram enquanto gritavam forte. Lelé logo os perdeu de vista e tudo voltou a ficar em silêncio. Aquela cena incomum aqueceu seu coração em meio à madrugada fria. A liberdade daqueles homens, que ele sabia, eram tão sofridos, ou até mais sofridos do que ele, era causa do seu júbilo.

 

VI

 

Alguns dias depois, Carolina e Ester faziam juntas mais um de seus passeios pela cidade. Tinham muito que conversar.

— Sim, minha amiga, eu dei-lhes um tapa na cara, foi tão forte, tão forte, que depois quase que fiquei com pena. Mas juro-lhes, juro-lhes! Jamais o reencontrarei! Não quero mais saber dele. Ficou sabendo? Todos os seus escravos fugiram! Ele está à beira da falência. Quero sentir pena, mas não consigo.

— Fico pensando… Para onde esses escravos vão agora? Tem Senhores de Escravos por todos os lados… Como conseguiram ficar livre?

— A abolição está para chegar minha amiga, enquanto isso eles se aglomeram nos subúrbios da cidade, dizem por aí que vivem próximo de morros, e parecem que já chamam o local de “favela”.

— De qualquer forma, espero que um futuro melhor nos encontre. Espero que o destino seja complacente com nossas angústias. O mundo não aguenta mais tanto sangue, tanta dor…

— Pois é, e seus alunos, como estão?

— Não mudou muita coisa, provavelmente não irá mudar. O próprio fato de haver uma professora mulher, assim como eu, já é algo que assusta a todos. A educação será um desafio até para os próximos séculos. Enquanto isso, continuaremos lutando como convém.

— E como estão seus cortejos, minha amiga? Certamente com tamanha beleza, há de ter alguém muito interessante que lhe interesse, e claro, que também se interesse por ti.

Ester ficou vermelha. Carolina insistiu na pergunta, ela conhecia sua amiga e sabia que ela não estava sentindo vergonha atoa. Sem poder continuar calada, Ester confessou: — Estou realmente apaixonada…

— Conte-me, conte-me quem és o sortudo que tens a sorte de ter seu amor!

— João Lelé, o andarilho.

— O quê!?

— O que posso fazer? Desde quando se escolhe quem se ama?

— Mas como isso? Como sua família, principalmente seu pai, irá aceitar uma união dessas? Não tem nenhum cabimento isso. Onde você irá morar? Na rua como ele? Minha amiga, no amor há muito espaço para a fantasia, mas um pouco de dinheiro é essencial!

— Pensa que não sei dessas coisas, minha amiga? Sei de tudo isso, e é o que me preocupa! Tenho de lutar contra esse sentimento, mas basta que eu o veja pelas ruas para que meus dias ganhem outra cor. Ele é a pessoa mais bondosa e inteligente que já conheci. Ele daria aula para qualquer um dos professores que já tive. Ele é como um filósofo, e não sei o porquê, mas ele me encanta como ninguém nunca encantou… Mesmo sendo sujo, fedido e bêbado!

— Pelo jeito que você fala dele, logo se vê que está realmente apaixonada. Não sei se te desejo sorte ou se te digo para ter cuidado, mas e quanto a ele? Gosta de você?

— Difícil saber do que ele gosta! Ele parece viver o tempo todo feliz com tudo. Tirando a parte que está sempre bêbado… Sobre isso, me disse que bebe para não sentir a dor da fome e do frio e também para afastar o tédio.

— Você sempre foi mesmo muito estranha. Por que tem que gostar das coisas mais excêntricas? Poucas mulheres se atrevem a ser professora, você vai lá e se torna professora, agora, arrumou um jeito de se apaixonar por um mendigo, você é a pessoa mais cômica que conheço! Deve ser por isso que te amo.

— E tem mais uma coisa, minha amiga, ele me contou como se tornou o que é.

— A é? E como foi?

— Ele me disse que seus pais o abandonaram num orfanato, nessa época, ele lia muito e vivia a esperar que alguém lhe adotasse, mas nunca aconteceu. Quando atingiu enfim a maior idade, o orfanato lhe disse que não poderia mais cuidar dele, e o colocaram na rua. Entregando-se a solidão, passou a roubar livros, pedir e limpar quintais. Ele não sabe explicar porque é tão feliz, porém parece não sentir nenhuma vontade de sair dessa vida. A única coisa que lhe incomoda é a falta de saúde.

— É uma bela história, Ester. É uma pena que as coisas tenham que ser assim, mas e quanto a roubar livros, como é isso? Se não em engano, na primeira vez que nos conhecemos, ele havia dito que não era ladrão, nem mau feitor e nem assassino. Sempre com aquele jeitão de poeta louco.

— É, mas isso foi uma mentira. Ele tem o costume de roubar livros das bibliotecas da cidade. Ele me disse que entra para pedir comida, e acaba sempre pegando algum título. Não consigo julgá-lo mal. Pelo menos ele lê os livros que rouba. Muitos deles jamais seriam lidos se continuassem na biblioteca. Pleno século XIX e as pessoas estão trocando os livros pelas andanças de trem e pelas pingaiadas nas mercearias.

— A bestialização sempre existiu, minha amiga, mas de qualquer forma roubar livros continua sendo roubo. Tome cuidado, porque quem rouba um livro pode roubar outras coisas.

— Sei disso. Para ser sincera, ele já roubou outra coisa… Meu coração.

Ambas começaram a rir, mas antes que pudessem naturalmente cessaram as risadas, Ester falou sério:

— Preciso tirá-lo dessa condição.

— O que pretende fazer?

— Não sei, não sei!

— Olha só, Ester, olha só, aí vem ele!

Lelé vinha de longe e em direção as moças, mais cambaleante que de costume, porém com um sorriso no rosto. Carolina pôde sentir que Ester ficava nervosa, porém, de certa forma conseguiu compreender os motivos pelo qual sua amiga havia se apaixonado por tal homem: ele trazia no rosto um sorriso sincero, coisa que ela nunca havia percebido em Frederico e em nenhum dos homens que a cortejavam.

Dessa vez, diferente das outras, o andarilho não trazia nas mãos uma garrafa de pinga, mas sim um livro vermelho.

— Boa noite, senhoritas.

Ester respondeu:

— Prefiro te ver com um livro em mãos que com uma garrafa de pinga.

Visivelmente muito embriagado, ele respondeu:

— A pinga já se acabou dona Ester.

— Esse vício vai acabar com você.

— Sem esse vício não sou ninguém. Fico feliz em te ver. Você é o anjo de minha vida, meu amor, meu sol, meu céu, minha estrela guia…

Carolina, percebendo a poesia que Lelé havia feito para Ester e também a forma como ela a recebeu, com um sorriso largo no rosto, pôs-se em retirada:

— Minha amiga, para mim já está tarde, vou-me embora, tenham uma boa noite.

Ester, pegando no braço de sua amiga contestou a decisão:

— Aonde vais? Fique aqui, está doida?

Enquanto conversavam, Lelé escorou-se num poste de luz ali próximo. Sem se aguentar em pé, sentou duma só vez no chão, fazendo com que o livro caísse aberto e de capa para cima, logo depois, jogou-se ao chão e deitou a cabeça no livro. Carolina, percebendo a situação, cochichou com sua amiga:

— Veja o estado dele. Não está aguentando nem consigo mesmo. É lamentável.

— Sim, eu estou vendo, mas o que posso fazer?

— Talvez possamos levá-lo ao hospital.

Ester então se dirigiu em direção a um dos lados do homem e Carolina ao outro. Com muito esforço as duas o levantaram e ele resmungou olhando para Ester:

— Por que me ajudas tanto? Deixe-me, não mereço todo o cuidado que tens comigo.

Sem aguentarem carregá-lo direito, Carolina tropeçou e caiu de lado. Lelé foi direto para o chão e Ester fazendo muito esforço para segurá-lo acabou caindo por cima dele. Próxima do rosto dele, emaranhada pelo cheiro de cachaça e pelo seu odor das ruas, sem se perguntar porque e se esquecendo de todas as convenções, Ester se deixou ser tomada por um tipo de loucura e o beijou na boca. Enfim, quando aqueles quatro ou cinco segundos de beijo se acabaram, ela percebeu que ele havia desmaiado. Carolina com muita surpresa exclamou:

— Amiga! Você o beijou!

Ester triste respondeu:

— Sim… Sim… Uma pena ele nem ter sentido.

— Vamos, vamos levá-lo daqui. O hospital não é muito longe, e logo alguém aparece para nos ajudar.

Pegaram-no, Carolina pelos pés e Ester pelos ombros. Saíram a carregá-lo pelas ruas. Levaram então o andarilho para o hospital.

 

VII

 

Alguns dias depois e já recuperado, Lelé dormia na rua como de costume. Belchior, o soldado preferido de Frederico, sozinho e sem perceber a presença do mendigo, olhou para todos os lados e julgou estar sozinho. Então, em alto e bom-tom, parecendo profético, proclamou olhando para o céu:

“A vós que me vês pelas ruas, saibam todos, exerço com honra minha função

Tenho orgulho do meu uniforme, orgulho do meu brio e de minha importância

É, sou policial sim Senhor, sou eu, eu e mais ninguém, que fornece a proteção

Sem mim o que seria do mundo? Quem combateria o mal e a arrogância?”

Depois se pôs a delirar em seu último verso enquanto virava a esquina e sumia da visão de Lelé:

“— Quem combateria a arrogância? Se não fosse eu… Quem combateria a arrogância? Eu… Eu… Eu sou quem mais combate a arrogância… Sou eu, o protetor, o combatente da arrogância, a arrogância dos loucos…”

No outro dia pela manhã, na praça central da cidade, houve um grande alvoroço o qual reuniu algumas dezenas de pessoas. Belchior trazia Lelé algemado. Ele como sempre muito bêbado, debatia-se e tentava a todo custo se soltar.

— Desgramado! Sempre desconfiei! Sabia que você não passava de um ladrãozinho, agora tenho a confirmação.

Lelé, dessa vez muito preocupado e sem o seu bom humor como de costume, tentava contornar a situação: — Mas eram só livros, senhor… Livros inclusive da biblioteca pública… Prometo que ia devolver quando terminasse de ler!

— São só livros? Então os compre. Aliás, o senhor poderia ter feito um cadastro e pego os livros sem precisar roubá-los.

— Como poderia fazer isso seu guarda. Como? Meu dinheiro mal da para comer, e quanto ao cadastro na biblioteca, é necessário fornecer endereço, mas como sabes, não tenho morada, não tenho endereço nenhum.

Dando cacetadas nas pernas do andarilho, Belchior respondeu:

— Engraçado é que seu dinheiro sempre é suficiente para que você esteja bêbado como está visivelmente agora. O bibliotecário me contou tudo. Há tempos ele desconfiava de suas frequentes idas há biblioteca.

— Solte-me, solte-me…

— Cale-se! Quanto mais se debater, mais irá apanhar!

— Solte-me, solte-me, não faço mal a ninguém, apenas leio e bebo… Apenas leio bebo e penso… Que mal há nisso?… Solte-me, solte-me…

Batendo incessantemente no homem e recebendo aplausos e apoio da maioria que ali estava, Belchior gritava enquanto reprimia o homem:

— Vai aprender sua lição hoje mendigo! És um louco das ruas não é? Pois aprenda agora a lhe dar com meu cassetete!

Ester, que passava pela praça e viu o alvoroço, aproximou-se e obviamente quis tentar ajudar o seu amado:

— Pare! Pare! Pare de bater nele!

— Espero que você tenha aprendido a nunca mais roubar! A próxima vez que chegarem a meus ouvidos que você está roubando. Escute bem rapaz! Da próxima vez… Prometo-te, aqui, diante de todos que se acabarão os seus livros e suas bebedeiras. Na prisão eu mesmo me encarregarei de cuidar para que não lhes deem nenhum livro. Eu mesmo me encarregarei de tornar sua existência a mais monótona das existências. Tu serás alienado, assim como deve ser todo bom mendigo!

Após a multidão se dispersar, Ester se sentou no chão e colocou a cabeça de Lelé em seu colo.

— Você está bem? Está machucado?

— Você é um anjinho. O meu anjinho. És a pessoa mais linda que conheço. Ainda não entendo porque me ajuda tanto.

— Por que lhe amo, porque me sinto muito bem ao seu lado… Você precisa sair dessa vida João! Precisa mudar isso. Posso ajudá-lo.

— E o que você sugere? Que eu me mude para sua casa? Seu pai certamente me receberia tão mal quanto o guarda que a pouco saiu daqui. Inclusive, é até perigoso que te vejam me segurando em seu colo. O que espera fazer?

— Arrume um emprego, depois… Estarei te esperando. Não podemos ficar juntos se você estiver nessa condição.

— Não, não posso. Você merece alguém melhor do que eu, além disso, não devo mudar por conta da pena que você sente de mim. Você não me conhece, não sabe como é minha vida. Na maior parte do tempo, estou metido nessas confusões. As confusões são comuns em minha vida. O incomum é você e o seu amor. Por que gosta de mim? Há muitos homens melhores do que eu. Há muito tempo já aceitei minha condição. Se eu não for o andarilho, quem será o andarilho?

— Por que você tem que ser tão difícil? És inteligente, poderia ser quem quisesse ser.

— Quem quero ser eu já sou e não quero estragar a vida de ninguém.

Lelé levanta e abandona o colo da moça que instantaneamente começa a chorar.

— Por favor, pare de chorar, no fundo você sabe que não sou o melhor para você.

Ela perguntou aos soluços:

— Você se lembra que nos beijamos?

— Nos beijamos?

— Sim, no dia que te levei junto com Carolina até o hospital nós nos beijamos, mas você estava muito bêbado para se lembrar… Já eu… Nunca esquecerei.

— Por favor, senhora, deixe-me… Somos como dois universos distintos, é impossível que tenhamos algo além dos nossos encontros casuais pelas ruas da cidade.

Muito triste e sem saber o que dizer, Ester vai embora.

Eles nunca mais se encontraram.

 

VIII

 

Dias depois, Belchior fazia sentinela pelas ruas da cidade em busca de informações sobre os negros fugidos, mas na realidade ele encontrou outra coisa: era Lelé caído próximo a um banco de viela. Chutou suas pernas e pisou na sua barriga. Nenhuma resposta. Estava imóvel e pálido. Conferiu a pulsação e depois confirmou:

— Está morto.

Belchior percebeu que nas mãos do homem havia um pequeno papel amassado, tirou de suas mãos e leu em voz alta:

“Se pudéssemos viver a mesma vida infinitas vezes, se pudéssemos repetir tudo o que passamos, sentimos, vemos, sofremos… Se pudéssemos chorar de novo todas às vezes que choramos, se pudéssemos amar de novo todas às vezes que amamos, então eu estaria contente… Seria um prazer enorme repetir tudo o que vivi… Mas não sei se posso perceber esse sentimento no mundo. Este mundo não foi feito para mim. Eu não sou desse mundo, e não pelas injustiças que sofri e nem pelas perseguições que me fizeram… Não sou santo e não sou vítima, mas o que mais me dói é que tudo que sempre quis nunca foi compatível com as necessidades do mundo e nem com as das pessoas. O meu humor e meu jeito de viver feliz tendo tão pouco sempre incomodou a todos que de mim se aproximaram. Sempre me preocupei mais com o ser do que com o parecer ou com o ter, por isso, partirei feliz como um mendigo anônimo e talvez um dia voltarei a viver uma outra vida; por hora, pretendo partir para o lugar de onde eu jamais deveria ter saído… O mesmo lugar onde eu estava antes de nascer, onde não existiam dores e eram apenas cores variadas – sem escravos e senhores. Descobri que minha vida estava consumada quando percebi que a questão principal não é sobre quem eu quero ser, mas sim sobre o que eu sou e eu sou, JOÃO LELÉ DA SILVA, o andarilho, o errante”.

Aquelas palavras aqueceram a noite fria de outro mendigo que dormia numa rua próxima dali. Ao fundo, a lua, o latido dos cães e vários corações aflitos pela constante repreensão que ninguém sabia muito bem de onde vinha, mas era sabido que pairava no ar.

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