Um banquete sobre a amizade

Na ponta da mesa, senta-se Cícero, nosso romano anfitrião

Cicero

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Antes de tudo, quero dizer que no último texto eu menti. Sem querer, mas menti. Explico: de alguma forma deixei a entender que seria o meu último texto sobre Cícero – para ajustar as coisas, o último relativo ao livro Os deveres –, mas se, por ventura, os leitores e amigos pensaram que Cícero demoraria a voltar a dar as caras nesta singela coluna, enganou-se. Acontece que Cícero me pegou forte pelas orelhas e fui a outro de seus textos: dessa vez trataremos de Lélio ou a amizade, que também, tal como Os deveres, é outro que estava perdido há muito tempo entre meus livros, relegado ao esquecimento, e que nunca havia me despertado interesse. Dei cabo da leitura dele em apenas algumas horas, pois não passam de cem páginas.

Impressionante perceber como há coisas que estão tão próximas, no entanto, tão desconsideradas. Pode ser um simples livro, um objeto, ou pior de tudo, um parente ou um amigo, que, por vezes, não sabemos tratá-los tão bem quanto gostaríamos e nem tão pouco dar a eles o tanto que supusemos que mereciam – estou certo que todo mundo já sentiu isso, e é justamente o que será tratado aqui. Vale, no entanto, antes, algumas palavras sobre o que se segue: faço novamente uso da fértil imaginação, tomando a fantasia e a inspiração como elementos centrais do texto, para passar os ensinamentos e compartilhar as angústias – sem o compromisso analítico de ser totalmente coerente com as palavras de Cícero: é bom dizer que o Cícero que mostro é totalmente o Cícero que eu entendo e não o que talvez ele realmente tenha sido. É um Cícero meu, como um tipo de angústia.

De algum modo, creio que sempre que se interpreta um texto de autor morto isso acontece. Assim, gradualmente as palavras do autor vão nos moldando até entendermos ele igual a todo mundo entende, ou então, diferente, e aí, temos de apresentar uma tese para colocar todo mundo em xeque: vejam tolos, todos entenderam errado! Eu venci. No entanto, a probabilidade de todo mundo ter errado e o autor seguir incompreendido é absolutamente alta. Há sempre um entendimento que é normatizado sendo o mais correto ou coerente; também fazemos isso quando queremos estipular o que é normal.

Eu não faço ideia do que estão falando por aí sobre Cícero. Nunca li comentadores ou especialistas e assim pretendo permanecer. Meu compromisso com Cícero, como o próprio diz sobre a amizade, é livre de interesse, cheio de leveza, com uma prudência ligeiramente apaixonada e totalmente amistosa, sim, exatamente como em um jogo de futebol de pré-temporada, onde duas equipes se enfrentam apenas para aquecer as juntas e o coração dos atletas, que não se esforçam demais para não se machucarem; onde o técnico não grita e nem fica louco na beira do campo para não gastar a voz, onde se faz testes de jogadores vindos da categoria de base, e também, onde os torcedores não se exaltam quando a equipe é derrotada, porque, no fim das contas apenas a diversão e o riso estavam em jogo. Meu Cícero, portanto, é como um jogo amistoso de futebol; é como um amigo que está ali para atender ao telefone a qualquer hora. Ele é cheio de problemas, mas mesmo assim, me ouve e me aceita. Nosso romano é meu Cícero: os problemas dele são os meus, no entanto, eu não espero ajudá-lo, mas sim que ele me ajude. Eis aí, talvez um bom fundamento para tratar da filosofia prática em antagonismo à filosofia catedrática, na primeira vive-se, inspira-se, traga-se vagarosamente o álcool engolindo aos poucos, aí está em jogo apenas a honestidade, na segunda, sobrevive-se, se é julgado, embriaga-se com o álcool sem apreciá-lo, e, aí está em jogo apenas a utilidade – mas devemos encontrar o meio entre o honesto e o útil. Seguimos, portanto, trazendo a mensagem de Cícero no gatilho da escopeta, descartado tudo que é útil sem ser honesto. Grande lição que não se deve perder de vista, tanto para uso na cátedra quanto nas edículas.

A cena agora é diferente. Retomemos a filosofia na sua forma estética mais genuína ao estilo platônico: imaginemos um banquete, Cícero sentará na ponta da mesa, não exatamente por ser o homem mais importante, pois, eu creio que entre os verdadeiros filósofos, a disputa sempre será para saber quem é o mais banal e menos importante; se ele senta na ponta é exclusivamente por ser o anfitrião, o do dono da casa que quer com os seus olhos conseguir alcançar todos os convivas, afinal, ele sabe que estamos ali para ouvi-lo. Dissipa-se a nuvem. Estamos, portanto, em Roma, na casa de Cícero. Recebidos com as maiores requintarias e regalias. Nenhuma necessidade corporal está aí presente. De vinho, excessivamente se fartará a cabeça, porém, não ao ponto de ludibriar os sentidos. A música cura. A dança das mulheres e dos homens restabelece e nos enche de luz o espírito filosófico. Que cada um coma o quanto quiser, beba o quanto quiser, dance como quiser, fale o que quiser – mas que se responsabilize pela quantia de comida que come, pelo quê bebe, pela forma quê dança e principalmente pelas bobagens que fala. Assim seja. Sigamos, vamos entrar.

Recebe-nos na porta Têrencia, esposa de Cícero, fazendo reverências, curvando meio corpo, esticando os braços e movendo as mãos em direção da porta:

— Nossa casa ainda é Roma e Roma é nossa casa. Aqui imperam as leis republicanas e nenhuma tirania é aceita.

— Sim, está certo Terência, a tirania aqui não é aceita, por isso, deixem do lado de fora o ódio que tenham eventualmente guardado em vossos corações. Dos amigos verdadeiros, porém, não espero que conheçam as leis, principalmente se forem estrangeiros como esses daí. Entrem, sentem-se, sirvam-se, sintam-se em casa e tragam-me suas reflexões – falou nosso romano.

— Viemos para ouvi-lo falar sobre a amizade – eu disse ainda envergonhado e sem jeito por conta da recepção calorosa e por encher os olhos na mesa farta e no bom cheiro do pão e do vinho.

— Sim, exatamente, estamos aqui, porque queremos entender o motivo pelo qual os nossos amigos nos abandonam e, porque é tão difícil mantê-los, além disso, sobre como devemos nos comportar nas relações de amizade – falou outro dos presentes.

Cícero entornou uma boa dose de vinho e começou…

— Na minha obra Lélio ou a amizade, que escrevi a pedido de meu amigo Ático, trato sobre as histórias que aprendi de meu mestre, o velhinho Scevola, de que durante a minha infância não descolava na intenção de aprender com a experiência dele. Scevola discorria sobre muitas coisas, e quando na época em que a grande amizade de Públio Sulpício e Quinto Pompeu foi abalada pela disputa do poder, ele nos contou o que havia ouvido de outro, ainda mais sábio que ele, tratava-se de Cáio Lélio, que relatou tanto para Scevola quanto para seu genro Caio Fânio, alguns dias após a morte de Cipião, o Africano. Cipião foi um grande amigo de Lélio, e esse deu testemunho ao meu mestre Scevola sobre como era grande a amizade de ambos. Temos sempre que olhar para os antigos, pois são eles que nos ensinam as melhores coisas.

“E eu pensando que Cícero já era antigo o bastante” – pensou a consciência do leitor.

— Embora Cipião tenha sido um grande amigo de Lélio, ele suportava com muita calma a dor que a morte do amigo havia lhe causado. Com a morte de Cipião, o mais sábio entre àqueles antigos passou a ser Lélio, por isso, o que ele ensinou a Scevola, transmito agora para vocês, caros estrangeiros…

Tilintavam copos e garrafas. O banquete seguia extravagante. Cícero prosseguia, entre uma tragada e outra de vinho, cada vez mais aumentando o volume da voz, não por embriaguez, mas para ser ouvido por todos que cada vez mais se agrupavam em volta da mesa. Naquela época, não só os ensinamentos dos filósofos importavam, mas mais ainda aquelas histórias que eles contavam sobre os seus mestres, pois mais admirável que ouvir os ensinamentos do sábio é ouvi-los dizendo como se tornaram sábios. O conselho é o fruto, o aconselhador são os galhos e tronco, mas, a fonte da sabedoria desse último está na raiz. Lélio é a raiz. Cipião era a terra, mas, não só, pois era também o sol e a água. Mais precisamente e de fato, Cipião estava morto e carcomido pelos vermes embaixo da terra, porém seus ensinamentos estavam todos ali reunidos, totalmente presentes e vivos no banquete e na ponta da atenção das dezenas de ouvintes…

— Em primeiro lugar, só existe amizade entre homens de bem. Um dos estrangeiros aqui presentes, justamente poderia perguntar o que entendo por homens de bem. Pois esses são aqueles que agem em proveito da honestidade e nunca da utilidade. São todos aqueles que na sua vida dão provas de lealdade, integridade, equidade e generosidade; são aqueles que não têm cupidez, paixões, inconstâncias e são dotados de grande força de alma (Cf. Lélio, 5). O homem de bem, na verdade, é um sábio. É aquele que entende a constância e a estabilidade das amizades, é aquele que nunca é desleal aos amigos. Ele é franco, cortês e nunca dissimula, tal como o sábio que compreende ser mais honesto odiar abertamente do que dissimular perante aos amigos! (Cf. Lélio, 18). A amizade verdadeira não é possível aos injustos e maus, porque eles não estão em consonância com a natureza e sem dúvida podem trair e serem desonestos com aqueles que pensam serem seus amigos. Basta que eles tenham diante de si uma vantagem e então trairão, roubarão e até mesmo matarão aqueles que consideram seus melhores amigos!

— Há três teses absurdas sobre a amizade que transmitidas por Lélio ao meu mestre Scevola: i) termos pelos amigos os mesmos sentimentos que temos por nós mesmos; ii) termos pelos amigos uma bondade de estrita simetria; iii) crer que a opinião que temos em relação a nós mesmos seja a mesma que os nossos amigos devem ter para serem considerados verdadeiros. Essa última, evidentemente é a mais absurda porque não cabe a um amigo manter a mesma relação que uma pessoa mantém consigo mesma; ao contrário, é papel do verdadeiro amigo dar conselhos em relação ao que sentimos por nós mesmos, já que constantemente erramos em relação ao que pensamos sobre o que fazemos. A primeira tese, sobre termos pelos amigos os mesmos sentimentos que temos por nós mesmos é falsa porque muitas vezes fazemos para eles coisas que nunca faríamos para nós: por vezes somos indignos com nossos sentimentos, violentos nos negócios e até suplicantes demais; com nossos amigos, no entanto a relação deve ser mais amistosa e até mesmo desinteressada, pois basta que estejamos juntos dos nossos amigos para que o companheirismo encha nossa alma de alegria – o que já é também suficiente para refutar a segunda tese sobre termos pelos amigos uma estrita simetria de reciprocidade, pois isso deixaria a amizade casta, séria demais, e isso seria tornar a amizade manca! (Cf. Lélio, 16).

Montaigne, traindo o seu modo respeitoso, interrompeu:

— Isso que dizes por último, meu caro Cícero, cobre-te de razão! No caso do meu melhor amigo, o inesquecível Étienne de La Boétie, sempre nos bastou a simples presença amistosa um do outro. Se algum de vocês aqui insistisse para eu dizer o porquê o amava tanto “não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu” (Ensaios I, XXVII). Acrescento ainda que a amizade cresce conforme aumentamos a frequentação que temos com nossos amigos, pois ela é nutrida de comunicação e é a junção das vontades dos amigos num único ser. E aqui vai uma história rápida para a reflexão de todos: Eudâmidas que era um homem pobre e tinha dois amigos ricos, Charixênio e Areteu, às vésperas de sua morte, no seu testamento, legou aos seus amigos ricos que cuidassem das necessidades dos seus parentes! Inclusive pediu que arrumassem casamento para sua filha! As pessoas em volta do tabelião riram achando a atitude de Eudâmidas um abuso e até mesmo uma tentativa de tirar proveito dos amigos (Cf. idem), no entanto, Charixênio e Areteu se encheram de orgulho e cumpriram com tudo que foi pedido. A amizade verdadeira, portanto, de nada tem a ver com a quantidade de dinheiro. Um tema que até gostaria que fosse discorrido pelo nosso romano

— Oh! Caro francês, as suas palavras sobre La Boétie, coisa mais bela não há… porque era ele; porque era eu… porque era ele; porque era eu… isso ecoa em mim! – eu disse embriagado pelo cheiroso vinho ofertado ali na casa de Cícero.

— Aquiete os ânimos estrangeiro, pois embora esteja coberto de razão que as palavras desse francês sejam realmente belas, a dúvida que ele pôs na mesa é de suma importância, e sobre ela também nos legou alguns ensinamentos do velho Scevola, ele dizia constantemente que “o mais importante na amizade é apagar a diferença de nível social” (Lélio, 19), por isso, por posse de alguma superioridade evidente de virtude, de gênio ou de fortuna um dos amigos percebe-se mais excedente do que o outro, deve ressarcir o amigo com tudo aquilo que tem. Não se trata de caridade, trata-se de saber colocar-se no mesmo plano. Também não se trata de pena, mas sim de fornecer o tanto que puder. Todos devem se atentar muito com essas questões porque são “as diferenças entre os temperamentos que provam interesses diferentes e cuja divergência desfaz as amizades” (Lélio, 20). Além disso, é essa razão que faz com que as pessoas de bem não sejam amigas das pessoas desonestas! Quando um amigo torna-se desonesto ou tenta nos pedir que de fazer algo injusto, temos de deixar essa relação relaxar, com a exceção dos grandes escândalos que são absolutamente intoleráveis. Significa que temos de ter respeito pelas amizades antigas, mesmo que nossos amigos tenham por ventura corrompido sua personalidade de honestidade. Relaxar uma amizade significa parar de frequentá-la e de procurá-la. É por isso também, meus caros visitantes, que eu, como seu anfitrião desse tão honroso banquete, digo-lhes, “não é a amizade que decorre da utilidade, mas a utilidade que decorre da amizade” (Lélio, 14), além de que, é preciso sermos capazes de julgar nossos amigos antes de por eles termos paixão e afinidade (Cf. Lélio, 22), porque, depois da afinidade criada, então será muito mais difícil não sermos por eles influenciados! Há uma máxima que Cipião achava detestável, ela diz: “Importa amar como se o futuro nos reservasse odiar”, mas, como pode ser amigo alguém que se imagina que poderá no futuro se tornar inimigo? Não há nada mais absurdo. É por isso que a prudência reina tanto quando a amizade é nova como quando ainda é jovem; no entanto, ao estar um amigo antigo precisando de um favor ao mesmo tempo em que um amigo mais jovem, devemos favorecer os mais antigos, porque as amizades são como o vinho! Melhoram conforme envelhecem! (Cf. Lélio, 19); e ainda quero lhes presentear com essa máxima da qual foi expressa pelo poeta Ênio: o amigo certo se vê nos dias incertos! (Lélio, 17).

Os convivas largaram os copos e talheres e começaram a aplaudir. Os amigos que ali presente estavam emocionavam-se enquanto entrelaçavam seus olhares. Sentiam que as palavras de Cícero traziam verdades profundas e que essas deveriam ser conservadas por toda a posterioridade, mesmo que Roma um dia viesse a cair. Que caia a cidade pelo fogo ou pela guerra dos injustos, mas a beleza e a justiça dos amigos serão para sempre conservadas no coração da humanidade. Da mesma forma que a raiz é invisível numa grande árvore, as amizades estão profundamente fincadas numa essencialidade metafísica.

Para a infelicidade geral e atropelando os aplausos, Nietzsche falou:

— O pecado é a santificação do engano! (Cf. Gaia C., 138). Não caiam no erro estúpido de apenas recomendar e recomendar! É preciso viver! Amigos são bons, sim, até mesmo nos dias difíceis, por isso, Ênio acerta quando diz que o amigo certo é aquele que se vê nos dias errados, mas não esqueçam que talvez os amigos errados sejam aqueles que vemos nos dias certos! A vida deve ser vivida e os dias certos podem ser considerados antes dos amigos certos! Hoje é um dia certo, mas ninguém aqui eu considero um amigo, portanto, são todos vocês, amigos errados. Vamos beber e rir, porque mesmo com tolos como vocês a vida vale a pena!

— Cale-se maldito Nietzsche! Tudo que diz é repleto de duplo sentido. Precisa urgentemente se tratar. Tu és uma verborragia ambulante! – falei sem receio, pois o detesto.

Ele não se importou. Talvez tenha concordado. A indiferença de Nietzsche não vai apenas ao nível da tranquilidade de ânimo – algo desejável para todo Filósofo –, mas também até a loucura silenciosa; tal como a cobra que se encolhe para atacar, e, antes de dar o bote, pula. Mas essa cobra é fraca. Ataca apenas a si mesma. Ninguém se importa com o que ela diz, pois sua voz enfraqueceu logo nos primeiros dias, quando Eva mordeu o fruto proibido. Seu modo escrupuloso assusta apenas as pequenas capivaras: fogem das cobras porque são baixinhas e pouco evoluídas ainda. Mas o pulo dessa cobra não alcança os céus. Platão permanece intacto. Sobre Deus, prefiro me calar. Maldito Nietzsche, maldito! Tornou-me ateu, matou o Cristo que vivia em mim! Por que devo respeitá-lo? Preguem-no na cruz! Dele aprendi apenas o pior.

— Malditos estrangeiros – gritou um romano.

— Calem-se! – disse outro.

— Deixem Cícero falar! Malditos! Malditos!

— Na amizade, o amor brota sozinho, mesmo que não o tenhamos procurado de modo algum! (Cf. Lélio, 27), além disso, esse amor permanece para sempre: nosso amigo que morreu, sempre viverá.

— Está muito correto, meu grande amigo! Mas devemos nos lembrar as palavras do sábio Epicuro “toda amizade é desejável por si própria, mas inicia-se pela necessidade do que é útil” (Antol. Epicuro – Lucrécio) – disse o epicurista Ático, o mesmo que recomendou a escrita dos ensinamentos de Lélio e que também era o melhor amigo de Cícero, um platônico com bases estoicas. Vale dizer que esses sistemas travavam grandes disputas para conseguirem estipular qual estaria mais apto a conquista da tranquilidade de ânimo e do sumo bem, a virtude por excelência.

— A disputa que travamos sempre em relação à amizade e a utilidade é genuína. Ninguém há de negar que Epicuro foi um grande sábio e que seu jardim deve ser restituído. A minha ideia é que a amizade, bem como toda virtude útil para a vida prática, seja balanceada entre o útil e o honesto, a qual, no fim das contas, parece-me que Epicuro até compreendia bem, já que nas palavras dele, também podemos ler que “não é amigo quem sempre busca a utilidade, nem quem jamais relaciona com a amizade, porque um trafica para conseguir a recompensa pelo benefício e o outro destrói a confiada esperança para o futuro” (Antol. Epicuro – Lucrécio). Meu caro e grande irmão Ático, que assim seja, pois não quero destruir a confiança que tenho na força da nossa amizade e na utilidade que posso esperar vinda de ti em relação aos nossos dias futuros. Ora, caso você fique doente ou morra primeiro, esteja certo que serei o primeiro a dar-lhe a mão, ouvi-lo e servi-lo com todas as coisas que me pedir e que estiverem dentro do meu alcance, mas mesmo as coisas que não estiverem, desde que sejam honestas, farei todo esforço para realizá-las, porque confortá-lo e servi-lo, conforta-me e me enche de alegria!

— O mesmo vale para mim, meu irmão – disse Ático.

— Estou para você, Ático, tal como Lélio estava para Cipião. Esteja crente disso. Aliás, por falar em melhores amigos, quero tecer as últimas palavras que ouvi de Scevola sobre a amizade, tendo em vista essa questão. Temos de ter cuidado com a arrogância! O excito nos negócios não deve ser motivo para arrogarmos os amigos, muito menos os melhores amigos! O poder corrompe o bem, a razão, e, portanto, a virtude. Um homem corrompido não poderá seguir sendo um bom amigo, além disso, o que adianta ter bens, sucesso nos negócios, poder e glória se não houver ao nosso lado os verdadeiros amigos para dessas coisas melhor desfrutarmos? Aqueles amigos que fizemos durante a nossa infância, que nem sempre são conservados para a vida inteira, há de se entender o seguinte: quando somos crianças, ainda somos cheios de paixões e, por isso, agimos irrefletidamente. Na infância, qualquer brincadeira, qualquer jogo, qualquer exercício sempre desperta nossa alma para unirmo-nos aos nossos amigos, mas quando crescemos, o autocontrole que naturalmente aparece com a maturidade acaba por nos levar para outros rumos, então, as vontades se desalinham e muitas das vezes perdemos aqueles que considerávamos os melhores amigos. Isso é uma disposição natural, no entanto, não é o caso daqueles que são iludidos pelo próprio poder que conquistam devido às suas decisões tomadas. Não há mal em conquistar poder, mas sim ser por ele corrompido; também não há mal em crescer e perder os amigos da infância, mas sim em desenvolver virtudes falhas que impedirão que se encontrem novos amigos verdadeiros. O piloto da amizade deve ser o espírito consciente, a razão fundamentada na virtude e no sumo bem! Agora, brindemos o vinho e as novas amizades!

Aquecidos pelo discurso de Cícero, todos nós, os convivas, romanos e estrangeiros, seguimos as melhores e mais prazenteiras conversas. Nenhuma filosofia coubera mais ali, pois os assuntos sérios foram relegados à desgraça. Seguimos no puro sentimento fraternal e dividimos os nossos mais íntimos segredos.

Ao leitor, um abraço amigo e amistoso.

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