Há uma dimensão do Brasil que só pode ser compreendida a partir do gado. Não do animal em si, mas do que ele representa: o elo entre a natureza bruta e a civilização possível. A pecuária, no Brasil, é mais do que um setor produtivo — é um símbolo civilizatório.
Desde os tempos coloniais, quando o boi rompeu as fronteiras do litoral e abriu as entranhas do sertão, a pecuária foi linguagem e ferramenta. Ela atravessou os séculos como força bruta e silenciosa, moldando territórios, fundando cidades, e criando uma cultura que é, ao mesmo tempo, resistente e maleável. No rastro dos cascos, surgiu um Brasil profundo, interiorano, feito de saberes orais, de técnicas empíricas e de uma inteligência intuitiva diante da vida e da terra.
Por isso, falar de pecuária é falar do tempo. É falar do Brasil como experiência geográfica e humana. A pecuária nos ensinou a lidar com a lentidão da maturação, com a espera das águas, com a observação do ciclo vital — algo quase filosófico em sua essência. É preciso paciência para criar. E o Brasil é, talvez, uma das últimas potências do planeta que ainda pode se dar ao luxo da espera.
No entanto, esse Brasil que espera também é cobrado. Cobrado pela velocidade do mundo, pela exigência dos mercados, pelos alertas da ciência e pelos clamores da ética ambiental. A pecuária, que antes bastava por si, agora é desafiada a se justificar. E isso não é uma tragédia — é uma oportunidade histórica.
O mundo de hoje não quer apenas carne; quer sentido. Quer saber como ela foi produzida, com que impacto, com que cuidado. O consumidor global, ao comprar proteína, deseja mais do que nutrição: busca coerência com valores. E o Brasil, se quiser ser protagonista de um novo tempo, terá de entregar não apenas volume, mas virtude.
O futuro da pecuária brasileira, portanto, não será medido apenas em arrobas, litros ou exportações. Será medido pela nossa capacidade de reconciliar produção e preservação, eficiência e sensibilidade, tradição e inovação. O novo pecuarista não é apenas um criador de animais; é um guardião de biomas, um gestor de carbono, um educador de consciências. É aquele que entende que o pasto não é apenas território, mas território simbólico, lugar de cultura e de compromisso com a vida.
Estamos diante de um divisor de águas. E esse divisor não é apenas técnico — é moral. Ou transformamos a pecuária em exemplo global de desenvolvimento sustentável e inteligência climática, ou continuaremos reféns de narrativas que nos reduzem a vilões ambientais, mesmo quando há excelência sendo praticada no campo com cada vez mais frequência.
A pecuária brasileira carrega consigo uma responsabilidade que poucos países possuem: a de alimentar o mundo sem trair o solo em que se pisa. E talvez aí esteja a mais bela contradição do nosso tempo: para avançar, teremos que retornar à sabedoria da terra, à escuta do ciclo natural, ao cuidado com o invisível.
Se conseguirmos fazer isso — unir o satélite ao sol, a genética ao instinto, o drone ao lombo do cavalo — não apenas manteremos o Brasil como potência agropecuária, mas o transformaremos em potência ética, simbólica, espiritual.
E talvez seja isso que o mundo espera de nós. Não apenas que sejamos grandes, mas que sejamos exemplo. E isso, no fim das contas, é o que diferencia a produção bruta da verdadeira grandeza.