por Pedro Ernesto Macedo
Há quem pense que o narcisismo é apenas vaidade — um apreço exagerado pela própria imagem. Mas não. O narcisismo é uma forma de cegueira. Uma doença da alma que faz o homem confundir a própria sombra com o próprio Deus.
Desde o mito original, Narciso não se apaixonou por si mesmo — apaixonou-se por um reflexo. Por algo que não existe. Ele morreu tentando abraçar a ilusão. E é isso que continuamos fazendo, século após século, com tecnologia, com filtros, com discursos e com uma voracidade que faria inveja aos deuses.
O narcisismo moderno não mora mais nos espelhos. Mora nas telas.
No brilho frio do celular, onde cada gesto precisa de aplauso e cada silêncio precisa de legenda. Tornamo-nos escravos de uma plateia invisível. Fingimos espontaneidade, ensaiamos naturalidade e vivemos exaustos tentando parecer reais.
Há algo de profundamente trágico em um tempo em que todos gritam “olhem para mim!” — e ninguém realmente vê ninguém.
A solidão contemporânea não é falta de companhia. É excesso de eu.
A humanidade se tornou um palco de egos. Todos querem ser protagonistas de uma história que ninguém lê até o fim.
Mas o narcisismo é uma armadilha perfeita: quanto mais o sujeito quer ser admirado, menos ele é amado. Quanto mais busca reconhecimento, mais se distancia da própria essência. Ele não quer viver — quer ser visto vivendo.
E é aí que nasce o desespero silencioso dos narcisistas:
Eles acreditam que são únicos, mas vivem como cópias.
Adoram falar de autenticidade, mas seguem modas emocionais.
Exibem confiança, mas tremem diante do esquecimento.
Vivemos a era da exaustão estética e do vazio existencial.
As pessoas não choram mais suas dores — postam-nas.
Não confessam fragilidades — transformam-nas em conteúdo.
A lágrima virou estratégia, o sorriso virou marketing, e a vulnerabilidade se tornou performance.
Mas a verdade é que o narcisismo é um pedido de ajuda mal disfarçado.
Por trás do exibicionismo há um medo atroz de não existir para o outro. O narcisista não suporta o silêncio, porque o silêncio não o aplaude.
Ele precisa da admiração como o mergulhador precisa de oxigênio.
E, sem perceber, vai afundando — cada vez mais fundo — no abismo do próprio reflexo.
O que é mais assustador: o narcisista individual ou a cultura narcisista coletiva?
Vivemos cercados por gente que acredita que ser é o mesmo que parecer.
Gente que se olha mais do que se escuta.
Gente que chama de “autocuidado” o que, na verdade, é autopromoção.
Gente que confunde autoestima com autoidolatria.
E o pior: fomos ensinados a aplaudir isso.
Aplaudimos quem fala alto, quem aparece mais, quem performa felicidade como se a vida fosse um palco de auditório.
Mas a verdadeira grandeza está no contrário: em ser discreto, em pensar antes de falar, em sentir antes de postar.
O narcisismo é o oposto do amor.
Porque o amor exige entrega — e o narcisista só sabe se servir.
O amor requer vulnerabilidade — e o narcisista vive de armaduras.
O amor constrói — o narcisismo consome.
Talvez estejamos todos, em maior ou menor grau, contaminados.
Porque a sociedade nos ensinou a buscar aplausos em vez de sentido.
E, nessa corrida, esquecemos que o sentido não está em ser admirado, mas em ser verdadeiro.
O mundo não precisa de mais Narcisos. Precisa de mais espelhos partidos.
Porque só quando o reflexo se quebra é que a alma começa a aparecer.
O espelho partido revela o que a imagem esconde: o humano, o imperfeito, o real.
Abujamra dizia que a vida é um exercício de lucidez — e talvez amar seja isso: manter-se lúcido diante da própria vaidade.
Aceitar que o espelho mente, que o olhar do outro distorce, e que só o silêncio interior é capaz de dizer quem somos.
No fim, Narciso não morreu de amor.
Morreu de solidão.
E talvez seja essa a advertência mais urgente do nosso tempo:
Quem se ama demais, morre sem amor.