Por: Pedro Ernesto Macedo
Há um erro estrutural na lente com que o Brasil se vê. Um erro tão antigo quanto a própria formação do Estado nacional: a crença de que o país nasce e se realiza nas cidades, enquanto o campo apenas serve — como cenário, como cofre, como silêncio.
Mas o que alimenta o corpo, sustenta a economia e ancora a cultura deste país não vem do concreto — vem da terra.
Vivemos em um país que construiu políticas públicas com uma bússola quebrada: ela aponta sempre para o asfalto, jamais para a poeira das estradas vicinais.
Quando se pensa em desenvolvimento, fala-se em PIB, inovação urbana, megaprojetos metropolitanos. Mas quase ninguém fala em saneamento rural, conectividade no campo ou sucessão familiar no agro. Há orçamento para ciclovias e startups urbanas, mas não há verba para armazenagem, logística ou extensão rural.
Por que será? Porque o campo não vota em bloco, não gera likes, não entra na lógica do espetáculo.
E porque há uma elite decisória que jamais sujou as mãos de terra — e não sabe que debaixo dela está o coração de um país inteiro.
“Os olhos da cidade são imediatistas; os olhos do campo enxergam o tempo que forma raízes”, escreveu certa vez um pensador latino-americano. A política brasileira se alimenta do agora. Mas o agro se move no tempo da maturação, da espera, da colheita. E por isso é tão mal interpretado: porque exige visão de longo prazo — artigo raro nos gabinetes e palanques.
O Brasil virou refém de uma ideia perversa: a de que o progresso nasce nos centros urbanos e respinga sobre o campo. Mas é o contrário. Sem o campo, não há cidade. Sem o produtor, não há mesa. Sem a roça, não há república.
Ainda assim, o agricultor segue sendo o coadjuvante de uma história que ajudou a escrever.
Ele é lembrado quando o dólar oscila, quando há crise alimentar, quando o PIB do agronegócio surpreende. Mas é esquecido quando se fala de educação pública, de crédito acessível, de justiça fundiária.
É o personagem principal de uma trama que se recusa a lhe dar o nome nos créditos.
Fala-se muito de futuro verde, de inovação, de economia regenerativa. Mas onde está o financiamento real para práticas agroecológicas? Onde estão os incentivos para a sucessão dos jovens no campo, que cada vez mais abandonam suas raízes pela ausência de oportunidades?
“Não existe futuro tecnológico onde falta dignidade básica”, já dizia Amartya Sen.
A ausência de políticas públicas efetivas para o agro revela mais do que negligência: revela um preconceito histórico, travestido de modernidade. O campo é visto como passado. Mas sem ele, o país não tem futuro.
E não se trata de romantizar a terra. Trata-se de reconhecer que o produtor rural não é apenas um agente econômico — ele é um pilar civilizacional. É o guardião de biomas, o herdeiro de saberes milenares, o gestor de um território que precisa produzir sem destruir.
Enquanto o Brasil se urbaniza nos mapas, ele se desertifica nas almas.
Porque cada escola rural que fecha, cada estrada de chão esquecida, cada produtor sem apoio, é um elo da nossa identidade que se rompe.
Chegou a hora de parar de olhar o campo com os olhos da condescendência ou da conveniência.
O Brasil precisa de políticas rurais não apenas para exportar mais — mas para existir com mais dignidade.
Se o país continuar enxergando apenas o que brilha nas avenidas, e não o que brota no solo, deixará de ser nação para se tornar apenas vitrine.
E vitrines, como se sabe, são frágeis. Quebram com o primeiro impacto.
Mas a terra — a terra resiste. E com ela, os homens e mulheres que a cultivam.
Mesmo invisíveis. Mesmo ignorados. Mesmo sendo o alicerce silencioso da nossa história.