A arte contemporânea tem dessas: você entra numa sala, vê… nada — e, de repente, sente tudo. Ou, pelo menos, sente a leve vertigem de imaginar que alguém pagou €15 mil por um “nada” devidamente certificado. Em 2021, o artista italiano Salvatore Garau vendeu em leilão a escultura “Io sono” (“Eu sou”). Não há bronze, não há mármore, não há sequer um holograma caprichado. Há um certificado de autenticidade e um manual de instalação: exibir a obra numa área vazia de aproximadamente 1,5 m × 1,5 m, livre de obstruções. O resto é ar — e, segundo o próprio artista, “espírito”.
Claro que, como tudo que encosta no feed, o caso voltou a circular agora, em 2025, por aquelas páginas que transformam curiosidades em trending topics — e, com isso, a escultura reestreou no palco do senso comum como “a obra invisível de R$ 87 mil”. A matemática dos cliques venceu de novo: um print, uma legenda espirituosa, milhares de compartilhamentos. Mas os números batem: a conversão do leilão em reais, com o tempero da cotação e do tempo, rende manchete boa.
Agora, respira comigo (no espaço expositivo, por favor): o que foi vendido? Não é “nada”, exatamente. É um acordo. O colecionador leva um documento que torna o vazio um lugar de atenção. O manual exige o campo livre — o enquadramento — onde o público projeta expectativa, riso, irritação, ou aquela epifania tímida que a arte às vezes arranca quando a gente abaixa a guarda. “A arte tem que te fazer sentir alguma coisa — desconfiança serve”, diria este que vos escreve. E aqui, convenhamos, funciona.
Dá para zombar? Sempre. “Se você não entendeu a obra, relaxa: talvez o artista também não”, eu mesmo já disse — e continuo assinando embaixo. Mas há um dado que separa o truque barato do gesto conceitual: o contexto. Garau não apenas “vendeu o nada”; ele delimitou um vazio com regras (dimensão, exibição), formalizou isso num certificado e entregou ao comprador a responsabilidade de sustentar o pacto. É performance sem performer, escultura sem massa, quadro sem tinta — e, ainda assim, um objeto jurídico e simbólico. É aqui que o riso vira reflexão.
Também não é um raio caído em céu azul. O mercado de arte adora formas de valor intangível — da assinatura no canto a um arquivo de bits com NFT. A diferença é que, no caso de Garau, o suporte é literalmente o espaço (e a nossa expectativa). O leilão confirma que há demanda não só por matéria, mas por ideia com boa narrativa. E repare: a instrução de instalação é a marreta que dá peso à leveza — sem ela, o vazio seria só, bom, vazio.
O backlash de agora repete o de 2021: metade do público chama de “golpe”, a outra metade chama de “gênio” — e ambos, curiosamente, ajudam a obra a existir. O escândalo é parte constitutiva do trabalho. E o meme, hoje, é a moldura que faltava: a cada repost, “Io sono” reaparece como um espelho do nosso desejo de participar do espetáculo — seja para aplaudir, seja para vaiar.
“Mas Alexandre, isso é arte?” Pergunta velha, resposta nova: é arte porque produz linguagem, fricção e rito. O colecionador que reservar um canto da sala, medir 1,5 por 1,5, e defender esse vazio do sofá novo e da planta da moda, está atuando como guardião do invisível — uma tarefa esteticamente ingrata e conceitualmente potente. Se a peça te dá vontade de discutir no café, missão cumprida.
No fim, a venda de “Io sono” é uma aula de economia estética: escassez + história + certificação = valor. O resto é ar — e nós, respirando dentro do enquadramento. Se te incomoda, ótimo. Se te diverte, melhor ainda. Se você topar exibir o nada seguindo as regras, bem-vindo ao clube: aqui, o vazio tem preço, autoria e manual. O museu começa onde termina o móvel.
Veredicto Alexandre: Entre o “não vale nada” e o “vale tudo”, Garau apontou para o canto da sala e disse: “eu sou”. O mercado respondeu: “nós pagamos”. E o público, como sempre, completou a obra com aquilo que nunca falta — opinião.








