Com mais de 30 livros publicados, entre romances, crítica, poesia, crônicas e contos, o paranaense Miguel Sanches Neto, de Bela Vista do Paraíso, lançou em 2022 aquele que é anunciado como seu derradeiro livro no universo ficcional: “O Último endereço de Eça de Queiroz” (Companhia das Letras, 184 páginas, brochura, formato 14.00 x 21.00 cm).
“Planejei este como o último livro que escrevi. Tenho dois outros prontos, que são anteriores. Um romance, ‘Inventar um Avô’, que sairá em março de 2023, e um livro de contos inéditos que pretendo não publicar, se eu tiver caráter suficiente para isso. Não quero escrever mais em nenhum gênero, apenas cuidar dos livros já publicados. Estou tentando com isso encerrar minha carreira de escritor, tal como um jogador de futebol faz quando chega a uma idade”, diz, em entrevista feita por e-mail a este repórter.
Em novembro deste ano, o autor participou da Festa Literária Internacional de Maringá (Flim), durante o bate-papo “Contos e Reencontros”. Além de comparecer a eventos neste formato, ele também é professor universitário, pesquisador e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
“Eu sempre escrevi exercendo outras funções. Durmo pouco e produzo muito. Tenho um perfil obsessivo. Então, tudo que é literatura me acrescenta algo, seja participar de um encontro, seja atuar em minha profissão, pois me coloca em contato com a tensões da vida real com pessoas reais. Agora, sei a hora em que devo me recolher, para escrever ou para não escrever”, destacando que conclui a carreira literária.
“Então ficarei cada vez mais ausente do debate literário. Sou um escritor em retirada”.
Em seu último romance escrito, Sanches Neto conta a história de Rodrigo S.M., que larga tudo no Brasil para cruzar o oceano em busca da “civilização” em Portugal. Ele visita os lugares vividos por nomes como Eça de Queiroz (da obra-prima “A Cidade e as Serras”).
O paranaense explica que “O Último endereço de Eça de Queiroz” nasceu de sua percepção de como a nova geração busca a carreira de escritor, “se é que ela existe”, como uma forma de construir uma vida cheia de grandes aventuras e de sucesso. “É um romance na contramão da glamourização da vida do escritor, pois escancara suas vilanias em nome de uma miragem: a escrita como nomeada social. O narrador foi baseado em uma notícia que li, de um jovem que larga o emprego para fazer uma oficina literária e se tornar escritor. Se a pessoa quer ser escritor, arrume um emprego, qualquer um, e crie espaços de tempo para se dedicar à literatura”.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Ao longo do romance, o narrador faz uma espécie de “tour literário”, visitando locais famosos de escritores portugueses (José Saramago, Eça de Queiroz etc.). Mas Rodrigo sempre se equivoca em suas ideias, em cenas que beiram o nonsense, o absurdo e o humor. Neste romance, Miguel, você preferiu enveredar por uma narrativa carregada de ironia e sarcasmo?
Este é um romance picaresco. Luiz Schwarcz, que leu os originais, até sugeriu que eu usasse este rótulo na capa. A cada livro, tento mudar o registro de linguagem, para não me repetir. Como entendo que vivemos um momento muito ruim da literatura, em que todos os personagens devem fazer e dizer aquilo que se espera deles, optei por um narrador que não tem nenhum caráter. Para ele não há limites, ele mente o tempo inteiro para si mesmo e para os outros. É um anti-herói que, aos poucos, vai tomando consciência de suas origens. Ele foge da vida interiorana no Brasil, partindo para Portugal, e só numa aldeia se encontra consigo mesmo. O momento exige um tratamento mais crítico dos personagens, que têm suas pequenas e grandes vilanias.
Em linhas gerais, “O Último endereço de Eça de Queiroz” estabelece ponte entre Brasil e Portugal, lançando um olhar para o cânone literário português. A impressão é de que quanto mais perto da cultura portuguesa, mais distante fica dos brasileiros. Pelo menos, do modo como Rodrigo se aproxima. É isso que lhe passa também?
Tentei compreender um movimento de ilusão que nos marca, a de que a grande literatura só ocorre na matriz da língua. O livro brinca com o falar lusitano, demarcando territórios. Sou um grande leitor de Eça, para mim o maior ficcionista lusitano de todos os tempos, porque o mais crítico em relação a Portugal, porque o mais próximo dos leitores brasileiros. Com Eça, a língua literária se aproxima de pessoas reais, então o encontro entre o narrador e Eça é uma forma de valorizar este vínculo entre as duas culturas. Rodrigo se descobre depois de ter um contato espiritual com Eça. É como se ele dissesse que a literatura portuguesa que nos representa é que a faz a crítica a Portugal, como é também a literatura brasileira que nos representa, a que faz a crítica ao Brasil.
Ao mesmo tempo que o livro se molda como um relato, com níveis de vozes, Rodrigo não produz obra alguma. Ele fica apenas bebendo, comendo, dormindo e passeando. É o paradoxo da literatura moderna, da autoficção? Ou seja, da experiência como um fim em si mesma.
Exatamente. Ele é o escritor sem obra, apenas com uma vida literária. É um modelo do escritor que nunca chega ao momento da produção, porque viver é mais urgente. Ele representa muito da má literatura de autoficção que tomou conta do país, baseada apenas na vida, quando literatura é sempre linguagem, conquista de um domínio linguístico com potência de significação. Viver é pouco para quem quer escrever.
Serviço
O livro “O Último endereço de Eça de Queiroz” está disponível nas versões impressa (R$ 64,90) e e-book (R$ 39,90). Para mais informações, acesse o site do Grupo Companhia das Letras.