A caminho de Damasco: uma resenha sobre um dos melhores quadrinhos nacionais de 2023

O Maringá

Página de "Damasco" (Crédito: Reprodução)

Presente em quase todas as listas brasileiras de melhores lançamentos de 2023, “Damasco” (208 páginas) merece todos os elogios e críticas positivas. É uma verdadeira obra-prima. Sem exageros.


Publicado pela editora Brasa (de Porto Alegre), trata-se de um quadrinho produzido a quatro mãos: Lielson Zeni (roteiro), que é paranaense, e Alexandre S. Lourenço (arte).

Essa graphic novel conta a história de Saulo, um homem comum que trabalha numa grande corporação, mora com seu gatinho (Dylan Cat) e tem uma namorada há quase cinco anos.

Mas o protagonista de “Damasco” vive uma vida rotineira, tediosa, repetitiva. É um marasmo total. Aparentemente, sem perspectivas nessa estrada. Ou grandes objetivos.

A saída encontrada pelo Saulo é evaporar, sumir, apagar essa trajetória. Ele se desprende de tudo: móveis, emprego, gostos… até mesmo do gatinho e da namorada (que era a garota dos seus sonhos). Mas não é tarefa fácil.

Falando assim, parece uma HQ simplória, como nesses filmes que pululam no Supercine ou nos streamings de segunda mão. Ao contrário, “Damasco” desperta interesse não apenas pelo enredo insólito. Mas principalmente pela arquitetura narrativa. O que importa não é o final, e sim como Saulo chega até ali. E aqui, sem spoilers.

Nessa urdidura quadro a quadro, Zeni e Lourenço se valem de elementos que se entrelaçam: páginas em branco, preto e “chuvosas”; uso da cor laranja (puxado para o damasco); estruturas repetitivas; linhas que formam mapas, plantas baixas, jogos etc.; movimento entre presente e passado; paralelismos… ou seja, recursos gráficos e narrativos que esgarçam ou comprimem a caminhada do protagonista rumo ao apagamento, a Damasco.

É um quadrinho para ler e reler, em busca de novos significados e entendimentos. Ou a falta de compreensão. É um tipo de gibi para apenas sentir. Principalmente, a melancolia nas páginas finais.

E, de certa maneira, é uma alegoria da existência humana, que no fim das contas tem a sua ordem repetitiva, mesmo para aqueles que buscam nas artes (seja fruindo ou produzindo) o escape, a tomada de consciência.

Nesse sentido, é simbólico (entre tantos simbolismos dessa HQ) o momento em que Saulo se prepara para sair e trabalhar. Ele se vê no espelho do banheiro, que a cada repetição desta cena revela um ser cindido no reflexo.

Capa da graphic novel (Crédito: Reprodução)

Origem
Segundo a Brasa, Zeni teve a ideia de “Damasco” a partir de uma notícia lida sobre um homem que pôs a própria vida à venda.

Edição
Não poderia deixar também de apontar a edição primorosa de “Damasco”, feita em capa dura, miolo impresso em Pantone sobre papel pólen bold 90g. Edição: Lobo; revisão: Samanzuca e Clarisse Cintra; capa: Victor Marcello.

A arte de Alexandre S. Lourenço, sutil e delicada, quase pictográfica, dá vida a essa narrativa estruturada da mesma forma que Saulo imagina ser sua vida: a partir do que possui – móveis, livros, gato, videogame e é justamente jogando um game que Saulo resolve agir. Damasco vai lidar com questões como memória, apego, a formação da identidade a partir do que consumimos e guardamos, de afetos interrompidos e de rotinas de trabalho massacrantes.

A cada capítulo, que trata de como Saulo se livrou de algum item, dialoga com um formato diferente de narração e traz suas próprias referências, que compreendem a cultura pop, a literatura, o cinema, a música, os games e, claro, as notícias do mundo real. Tudo isso no traço elegante e mínimo de Lourenço, com o texto preciso de Zeni.

Acompanhe a jornada de Saulo e sua tentativa desesperada de transformação, em uma história em quadrinhos sutil, que convida o leitor e a leitora para caminharem junto dos personagens e acompanharem suas imperfeições, seus momentos bons e ruins, e suas tentativas de serem humanos.

Protagonista Saulo e sua namorada (Crédito: Reprodução)

Autores
Quadrinista, ilustrador, roteirista e pizzaiolo amador, Alexandre S. Lourenço é formado em Letras-Italiano. Já publicou “Robô esmaga” (JBC), “Você é um babaca, Bernardo” (Mino), “Boxe” e “Durma bem, Monstro” (ambos independentes), além de ter ilustrado para a Folha de S.Paulo e ter participado de coletâneas como a revista Café espacial. “Damasco” é seu primeiro romance gráfico em parceria com Lielson Zeni.

Roteirista, escritor, pesquisador, crítico e editor, Lielson Zeni é formado em Comunicação e Letras. também é mestre em estudos literários (UFPR) e doutorando em Ciência da literatura (UFRJ), ambos trabalhos são pesquisas sobre quadrinhos. Publicou histórias curtas em revistas como Café espacial e Fronteira livre, é um dos ganhadores do BMA 2014 (história desenhada por Francis Ortolan), e fez quadrinhos sobre as Olimpíadas para a Veja (com arte de Alexandre De Maio). Publicou as prosas experimentais “Lado B: Uma história de amor para walkman” e “Mente do Macaco” (Balão). É membro do site de crítica de quadrinhos Balbúrdia, co-organizador do Prêmio Grampo. Foi editor-assistente na Mauricio de Sousa Produções (MSP) e editor na DarkSide Books, além de fazer trabalho freelancer de preparação de texto para diversas editoras. “Damasco” é seu primeiro quadrinho longo a ser publicado.

É um dos grandes lançamentos de 2023 (Crédito: Cristiano Martinez)

Editora
A Brasa Editora é um selo de quadrinhos brasileiros, que publica histórias sobre o Brasil para leitores brasileiros e todos os que gostem de nossa cultura. Do Oiapoque ao Chuí. Da periferia ao centro. Do mar ao sertão. E vice-versa.

Os primeiros títulos da editora, lançados juntos em novembro de 2021, foram “Brega Story”, de Gidalti Jr.; e “Lovistori”, de S. Lobo e Alcimar Frazão. Ambos premiados, foram aclamados com entusiasmo por público e crítica.

Serviço
“Damasco” está disponível para compra online. Visite o site da Brasa (www.brasaeditora.com.br) e saiba preço e forma de envio.

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