São Paulo, 1866. O menino Benê parte para o interior, na direção de uma fazenda de café. Na bolsa, ele carrega uma carta da escrava Tiodora, cujo destinatário é o marido dela, Luís. Tal missiva foi escrita pelo pedreiro e carpinteiro Claro Antonio. É uma viagem em busca da liberdade.
Eis a trama central de “Mukanda Tiodora” (2022, ed. Veneta), uma graphic novel escrita e desenhada pelo brasileiro Marcelo D’Salete.
Aliás, o título remete justamente ao universo epistolar, pois o termo “mukanda” (ou “mucanda”) se refere a missiva, carta. Isto é conforme o dicionário “Kimbundu-Português”, de A. de Assis Junior, mencionado antes mesmo de iniciar a narrativa desse quadrinho. O quimbundo é uma das línguas de origem banto falada na região de Angola.
Não por sinal, Tiodora da Cunha Dias era uma africana que foi escravizada no Brasil daquele período e suas cartas serviram de inspiração para a trama do quadrinista D’Salete. “Mukanda Tiodora” se tornou uma das HQs mais elogiadas de 2022, conquistando o Grampo de Ouro 2023; e duas estatuetas do HQ Mix, que é considerado o “Oscar dos quadrinhos no Brasil”, nas categorias Desenhista Nacional e Arte-Finalista Nacional.
E o gibi pode ir mais longe. Essa publicação da editora Veneta figura entre os cinco finalistas da categoria Histórias em Quadrinhos da 65ª edição do Prêmio Jabuti, que é realizado desde 1958, tendo se consolidado como a mais importante premiação nacional do livro e é referência no mercado editorial brasileiro.
D’Salete tem pela frente a concorrência de “A batalha” (ed. Quadrinhos na Cia), de Eloar Guazzelli e Fernanda Verissimo; “A Coisa” (ed. Gambatte), de Orlandeli; “Franjinha: contato” (ed. Panini Comics), de Vitor Cafaggi; e “O fim da noite” (ed. Darkside), de Diox e Rafael Calça.
A entrega das estatuetas para cada categoria será na próxima terça-feira, 5 de dezembro, às 20h, com transmissão pelo YouTube. No total, a premiação contou com 4.225 obras inscritas.
Inclusive, D’Salete já ganhou o Jabuti pela obra “Angola janga”, lançada em 2017, que trata dos antigos mocambos da Serra da Barriga, mais conhecidos como Quilombo dos Palmares.
Ou seja, não é de hoje que esse autor de histórias em quadrinhos, ilustrador e professor se dedica a questões de identidade e ancestralidade. Mas em “Mukanda Tiodora”, ele utiliza a escrita, no caso cartas, como estratagema. Em sonho, Tiodora recebe o aviso de que precisa cumprir a promessa de voltar para sua terra e conquistar a alforria.
Negra e escravizada
Ao longo de 224 páginas, a obra parte da experiência de uma mulher negra escravizada para contar uma história emocionante. O mensageiro Benê enfrenta e supera obstáculos até chegar ao destino da carta em sua bolsa. E depois, ainda precisa retornar com a resposta para Tiô.
Tudo isso é narrado em um estilo de desenho e história consolidado por D’Salete: quadrinhos em preto e branco, carregados de profundidade e dinamismo. Não é um simples traço, tamanho é sua personalidade e impacto.
“Este livro é uma carta, do nosso tempo, para a Tiodora. A sua mensagem talvez não tenha surtido o efeito almejado em sua época, mas hoje se torna fundamental para todos nós. Obrigado, Tiodora”, escreve Marcelo D’Salete no texto “Cartas, becos e vielas”, nos extras da edição da Veneta.
Inclusive, o livro também inclui textos das historiadoras Cristina Wissenbach e Silvana Jeha, uma cronologia da luta abolicionista em São Paulo e, pela primeira vez, a reprodução integral das cartas de Tiodora.
Contexto
Trata-se de uma narrativa que se passa em meados do século 19, quando a população negra seguia construindo seus espaços na cidade de São Paulo. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos conseguira construir a Igreja do Rosário, e em torno dela promovia celebrações com grande presença africana.
A área de matas conhecida como Campos do Bexiga, em torno do córrego Saracura, um refúgio para fugitivos da escravidão, já se transformava em base de uma comunidade negra.
D’Salete comentou que, além das cartas em si da Tiodora, o interessava também falar sobre o contexto de São Paulo daquele período, mostrando a relação da personagem central com outras pessoas negras, seja livres, seja escravizadas. “Pensar a relação dela como uma mulher negra, escravizada, que trabalhava para o cônego, uma espécie de padre em São Paulo. Mas, ao mesmo tempo, realizava alguns trabalhos de vendas, de água e outras coisas, pelas ruas da cidade”, disse o autor, durante bate-papo mediado pelo jornalista Ramon Vitral, na Bienal de Quadrinhos de Curitiba, em 2023.
Segundo o quadrinista, a história da Tiodora faz pensar em outras estratégias dessa população negra para conseguir melhores condições de vida, como é o caso da escrita. Outros escravizados daquele período se valeram de cartas como meio para reivindicar suas necessidades.
Autor
Marcelo D’Salete é um dos mais premiados quadrinistas brasileiros da atualidade. Vencedor do Eisner em 2018, por “Cumbe”; do Rudolph Dirks, do Jabuti e do HQ Mix, entre outros, por “Angola Janga”. Formado em artes plásticas e mestre em história da arte, é também professor e ilustrador.
Maringaense
O 65º Prêmio Jabuti também tem um maringaense concorrendo na categoria Biografia e Reportagem: o jornalista e escritor Laurentino Gomes, com “Escravidão: da independência do Brasil à Lei Áurea” (ed. Globo Livros). Ele pode vencer pelo segundo ano consecutivo, pois levou o troféu em 2022 pelo volume 2 dessa trilogia.
De certa forma, tem proximidade com Marcelo D’Salete, já que ambos transitam pelo mesmo período histórico brasileiro. O último livro da trilogia “Escravidão” é dedicado ao século XIX; à Independência; ao Primeiro e ao Segundo Reinados; ao movimento abolicionista, que resultou na Lei Áurea de 13 de maio de 1888; e ao legado da escravidão, que ainda hoje emperra a caminhada dos brasileiros em direção ao futuro.