Por: Eduardo Xavier
Percorria, a pé e sozinho, a região do cemitério de muro baixo, erguido com tijolos pintados de cal, onde pela calçada se avistavam jazigos antigos, raros visitantes e até cães esfaimados que buscavam a sombra generosa sob as árvores para seu repouso. Potes de água, espalhados pelo chão de terra, indicavam que os animais eram bem-vindos por quem ali trabalhava – uma melancólica caridade para com os vivos, às portas do reino dos mortos.
Aquele trajeto tornou-se parte da minha rotina naqueles dias de sombras interiores. Rumava ao posto de saúde para consultas médicas, saindo sempre com pedidos de exames laboratoriais que talvez explicassem minha letargia, minha ausência de sabor pela vida ou a vontade persistente de não ver o mundo além das paredes do meu quarto. A região, de poucas casas e movimento escasso, oferecia um refúgio salutar para minha alma enferma.
Alguns metros após o cemitério, no meio do caminho, divisava uma casa singular. Em frente a uma praça com aparelhos de ferro tubular colorido, uma academia para idosos cercada por sibipirunas imponentes, cujas raízes, como dedos ossudos de um cadáver subterrâneo, já erguiam e rachavam o calçamento. O morador, um idoso, era a própria encarnação do enigma. Chamava atenção imediata pelo chapéu preto de feltro de lã, adornado com uma pena vermelha, escarlate como sangue coagulado, na lateral. Ali, respirava-se uma atmosfera de tristeza mais densa e palpável que meu habitual desânimo. Um desalento que eu não sabia nomear, um véu de negrura que parecia emanar da própria casa.
O homem parecia alheio a tudo, como uma estátua de indiferença: às enchentes no Rio Grande do Sul, às mortes, à guerra em Gaza e na Ucrânia, aos casos de violência policial, à política que concentrava cada vez mais extremistas, aos amores e desamores, aos desentendimentos familiares, às fofocas dos vizinhos. Seu mundo havia se contraído àquela sala.
Por três dias consecutivos, percorri o mesmo caminho a passos lentos e furtivos para observá-lo, dominado por uma curiosidade mórbida. Caminhando pela rua, sempre que percorria os olhos, ele estava lá. Permanecia imóvel, espectral, na sala de assoalho vermelho. A casa, simples, tinha a fachada branca manchada de barro, parcialmente escondida por pés de mandioca, roseiras e primaveras que dançavam ao vento como espectros alegres num cortejo fúnebre. Um recanto florido de um mundo à parte, guardião de décadas de histórias — das mais felizes às demasiado tristes e agora silenciadas.
Na cadeira de arreio, desgastada pelo tempo e pelo abandono, repousava uma almofada de tecido puído, ainda assim um pálido consolo para o corpo cansado. Dia após dia, o velho ali estava, ouvindo músicas entremeadas pelo chiado estático e sibilante de um rádio FM mal sintonizado. O aparelho, sobre uma mesinha, ficava próximo ao ouvido. Talvez tivesse dificuldade para escutar ou, o que me parecia mais provável, simplesmente preferisse a intimidade daquele som distorcido, sua única e monótona companhia naquela solidão.
O chapéu preto deveria ser um fiel e sombrio companheiro de batalhas há muito perdidas. Pousava-lhe levemente sobre a cabeça, a aba longa cobrindo parte dos olhos semicerrados, que já não brilhavam como outrora, olhos que pareciam fitar não o mundo exterior, mas as paisagens de sua própria ruína. Sentia, com um frio na espinha, que meu destino, naquelas circunstâncias, não seria diferente daquilo que passara a testemunhar no caminho ao posto médico.
O velho não esperava visitas, tampouco almejava grandes acontecimentos. Aguardava apenas, com paciência silenciosa e funesta, o desenlace inevitável. À espera do anjo da morte. Para ele, não seria um temor, mas a aceitação serena e lúgubre do ciclo natural.
As tardes arrastavam-se, pesadas e opressivas, pontuadas pela algazarra de pardais e o murmúrio do rádio, que trazia notícias de um mundo ao qual ele já não pertencia e do qual parecia desdenhar. A memória, porém, decerto o transportava a tempos distantes: aos dias em que a sala fervilhava de vida, risos ecoavam e o jardim colorido servia de cenário para festas e encontros que o tempo inexorável havia varrido.
Agora, restavam-lhe o rádio e o chapéu, testemunhas mudas em meio ao assoalho vermelho, desfigurado por rachaduras, como cicatrizes provocadas por passos incontáveis que jamais retornariam. Um cenário onde o tempo parecia ter estagnado, congelado em uma melancolia perpétua. Contudo, a vida seguia seu curso lá fora — e ele, imóvel, em sua cadeira. Naquela quietude absoluta, havia uma estranha dignidade e uma paz terrível que só quem viveu intensamente e esgotou todas as esperanças poderia entender.
Meus compromissos no posto de saúde terminaram, mas continuei a passar pela casa do velho, alimentando uma fantasia mórbida de testemunhar alguma mudança: podas nas primaveras, a calçada varrida, um pé de mandioca arrancado, um diálogo com um vizinho. Que algo se movesse. Ele continuava lá! Sentado na cadeira de varanda azul, ouvindo o radinho chinês comprado em alguma loja de produtos do Paraguai, um oráculo de estática prenunciando o fim.
Minhas incursões ao seu mundo solitário duraram até que a vida, ou antes a morte, irrompeu naquele cenário como uma tempestade de verão. Na frente da casa, avistei um carro da polícia, um rabecão do IML e um pequeno grupo de curiosos, cujos sussurros formavam um zumbido de moscas ao redor de um cadáver. Juntei-me ao grupo — afinal, achava-me com o macabro direito de saber o que acontecera, após dias de observação silenciosa e da inquietante sensação de que, um dia, poderia ocupar uma cadeira como a sua.
O velho estava morto. Havia dias. Soube pela mulher ao meu lado, vestida com cores vibrantes que ofendiam a solenidade do lugar, batom vermelho e resquícios de buço, moradora das redondezas. Ninguém sabia ao certo há quanto tempo. Caberia à Polícia Científica determinar a causa e a data exata do óbito.
Chamava-se Estanislau. Há um santo com essa alcunha: Estanislau de Szczepanowski, da Cracóvia. Sobrenome impronunciável para minha dicção atabalhoada. O dele, contudo, devia ser simples — Souza, Silva, Oliveira, Pires… Ninguém ali sabia ao certo. A porta da casa permanecia aberta, um portal para o vazio, o rádio na mesinha, agora silencioso, a cadeira vazia, exceto pela almofada colorida, que parecia guardar o afundamento de seu último suspiro. Tinha 81 anos. Recebera a visita da morte, mas os vivos não apareceram. Nenhum vizinho notara que jazia imóvel na sala, naquela cadeira azul com o fundo em forma de barriga. Os curiosos abriram caminho para a urna de fibra, coberta por um lençol branco que não conseguia ocultar seu contorno final. No refúgio de simplicidade e memórias, ele aguardara o último visitante com a tranquilidade sinistra de quem sabe que o fim é apenas uma nova e tenebrosa jornada.
Sob o céu tingido pelo crepúsculo cor de sangue, ele finalmente fechara os olhos pela última vez, encontrando o descanso eterno que tanto parecia almejar. Deixou para trás uma sala de assoalho vermelho, um chapéu preto com uma pena vermelha – relíquia de um mistério jamais decifrado –e um jardim onde as flores, agora à mercê da natureza, sussurravam sua história para os ventos que ninguém mais ouvia..
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