A pandemia dos “especialistas da internet”

Efeito Dunning-Kruger: quanto menos se sabe sobre o assunto, mais confiança se tem ao falar sobre ele

A psicóloga Alessandra Dellatorre diz que “quanto mais sabemos, mais temos a aprender” (Foto: Arquivo Pessoal)

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“Teu c*” – essa foi a resposta do médico virologista Maurício Lacerda Nogueira, pesquisador e professor da Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), a um comentário no Facebook afirmando que duas pessoas haviam morrido depois de receberem uma dose da CoronaVac – que é uma informação falsa. A reação do pesquisador viralizou e se tornou um meme, sendo replicado na internet ao lado do currículo lattes dele.

A história perde a graça, no entanto, quando nos atentamos a um detalhe: o comentário que gerou a reação do médico replicava uma fake news e, mesmo sem nenhum embasamento teórico, tinha tanto destaque quanto a opinião do especialista. A pandemia do novo coronavírus colocou em evidência outro surto que já existia há muito tempo, mas tem ganhado cada vez mais destaque: a proliferação dos “especialistas” da internet.

Você provavelmente já recebeu um vídeo de alguém usando uma régua para tentar provar que a Terra é plana ou reparou que, durante a Copa do Mundo, sua rede de relacionamentos de repente parece ser formada por inúmeros treinadores de futebol. A moda da vez parece ser bancar o especialista em epidemiologia e divulgar alternativas mirabolantes para erradicar a Covid-19 ou o efeito colateral das vacinas, que podem nos transformar em jacarés. O fenômeno que leva pessoas sem nenhuma formação a falarem de um determinado assunto como se fossem especialistas tem nome: efeito Dunning-Kruger.

“É a ignorância da pessoa em relação ao quanto ela mesma é ignorante”, afirma a psicóloga Alessandra Dellatorre, ao explicar o fenômeno. Segundo ela a era da informação contribuiu para o aumento do ego das pessoas, e a busca pelo conhecimento, pela onipotência, dá uma falsa sensação de segurança. O conhecimento é poder, dá ao indivíduo a sensação de que ele está no controle da situação. “Mas a vida é mistério. E o maior mistério da vida é a morte – existem várias teorias, mas só vamos saber quando chegar nossa hora. E a pandemia escancarou que não temos, de fato, controle de nada”, diz.

O estudo dos psicólogos David Dunning e Justin Kruger, da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, apresenta também outro lado da moeda: enquanto alguns leigos superestimavam o próprio conhecimento, parte dos especialistas subestimam a própria capacidade, acreditando que todos possuem o mesmo nível de compreensão que eles mesmos. É como se Usain Bolt acreditasse que é fácil correr 100 metros em menos de 10 segundos ou o Chef Alex Atala achasse que qualquer é capaz de cozinhar sua famosa galinhada.

Alessandra aponta uma relação entre o efeito Dunning-Kruger com os limites do conhecimento. Ela citou uma analogia feita pelo professor Marcelo Gleiser em uma entrevista, comparando o conjunto de tudo que sabemos com uma ilha cercada pelo mar, que representa o desconhecido. À medida que aprendemos coisas novas a ilha vai ficando maior e, consequentemente, mais contato ela terá com o inexplorado. “Quanto mais nós sabemos, mais coisas temos para aprender. E voltamos ao dilema socrático: só sei que nada sei”, diz a psicóloga.

A maturidade intelectual também está relacionada ao fenômeno. “O pensamento infantil é mais fantasioso, não exige constatação, não precisa de comprovação científica para validar um conhecimento. A mente mais madura questiona mais. A palavra sabedoria vem de sabor, da necessidade de experimentar, fazer o teste da realidade”, compara Alessandra.

 

Internet

As redes sociais facilitaram a migração da “militância de sofá” para a internet. Antes o alcance do que uma pessoa diz normalmente se limitava ao círculo de convivência – amigos e parentes próximos. Hoje praticamente não existem fronteiras.

O psiquiatra Denílson Morais Junior, 29, admitiu já ter entrado em discussões contra os “especialistas da internet”. “Eu era mais combativo, respondia comentários nas redes sociais sobre temas de psiquiatria que são entendidos de forma errada”, recorda. 

Uma das situações mais marcantes foi quando uma amiga da mulher dele procurava ajuda psicológica para a filha, que estava deprimida. “Uma pessoa sem formação em saúde mental começou a falar de tratamentos que prometiam recuperar completamente a menina. Falou desde compostos vegetais até músicas do YouTube, e advertia a mãe a não levar a filha em um psiquiatra”, diz. Ele ficou incomodado com o falso especialista dando conselhos equivocados de forma tão veemente e foi contra-argumentar. “Entrei em uma briga interminável. Tentava mostrar que os argumentos da outra pessoa não faziam sentido”, recorda. As respostas que obteve eram, basicamente, links de blogs de autoria duvidosa que supostamente provavam os argumentos do falso especialista. “Terminei aquilo frustrado. Perdi várias horas que poderia ter ficado com minha família”, lamenta.

Hoje o psiquiatra admite que teria uma postura diferente. “Prefiro só orientar a procurar um especialista e, na dúvida, buscar uma segunda opinião”, afirma. Entre ter razão numa discussão de internet ou ser feliz, ele escolheu a segunda opção.

 

O Suco da Invisibilidade

O caso que incentivou os psicólogos David Dunning e Justin Kruger a estudar o fenômeno que hoje leva o nome da dupla é praticamente um roteiro de realismo fantástico. 

Existe um truque antigo usado para enviar mensagens secretas que consiste em escrever o texto com suco de limão e esperar secar – as palavras ficarão invisíveis. Para ler a mensagem é só aquecer o papel, com uma vela, por exemplo, que as letras voltam a aparecer.

Em 1996 um homem chamado McArthur Wheeler concluiu que, passando suco de limão no rosto, ele ficava invisível – e usou o artifício para assaltar um banco. Quando foi identificado pelas câmeras de segurança e preso pela polícia, ele não entendeu como foi descoberto mesmo usando a técnica da invisibilidade.

A conclusão a respeito do efeito Dunning-Kruger foi que a ignorância nos dá muito mais certezas do que o conhecimento. Para a psicóloga Alessandra Dellatorre a “vacina” contra os “falsos especialistas” é, justamente, a humildade. “O mundo é complexo, vamos morrer sabendo poucas coisas. Por mais que a gente entenda de determinado assunto, devemos sempre deixar uma porta aberta para a novidade”, afirma.

 Denílson já discutiu muito com especialistas da internet nas redes sociais (Foto: Arquivo Pessoal)

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