“Hoje, sei o que fazer para responder ao racismo”, diz bailarina Ingrid Silva |

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Ao ser perguntada sobre o combate ao racismo, Ingrid Silva disse esta é também uma questão de “narrativas” e contou que teve que abandonar o balé no Brasil porque “aquele ambiente não estava preparado” para ela.  

“Meu irmão e eu éramos as únicas pessoas negras na sala”, recordou após começar a crescer na carreira, como descreveu em seu livro “A Sapatilha que Mudou meu Mundo”,  

A bailarina afirma que é preciso acreditar mais no talento dos bailarinos negros também para cargos de liderança do setor. 

Atualmente, a artista promove ações em parceria com a ONU e sonha em levar o balé para meninas e comunidades carentes na África. 

Acompanhe a conversa com Monica Grayley e Eleutério Guevane 

Bailarina Ingrid Silva participa no Podcast ONU News

ONU News: Vamos começar falando da sua história. 

Ingrid Silva: É um grande prazer estar com vocês aqui hoje. Já tive um sonho de poder estar aqui. Então, este sonho hoje está se realizando. Já entrei com o pé direito então estou muito feliz. Eu comecei balé num projeto social chamado Dançando para Não Dançar com oito anos de idade. Sem nenhuma pretensão em ser bailarina. Sempre fui muito espoleta em casa, cheia de energia. Já fiz ginástica, futebol, natação. Mas balé, nunca nem tinha passado pela minha cabeça.  

ON: Não dançava nem na escola? 

IS: Ah dançava. Arriscava uns passinhos aqui e ali, mas nada a ver com o balé clássico. E aí, um vizinho da minha mãe lá de Benfica, onde eu nasci no Rio, ele recomendou que estava abrindo um teste de balé. E a minha mãe falou: ‘Nossa, vamos levar ela lá para fazer o teste de balé.’  Eu nem imaginava que o balé ia mudar a minha vida. E aí, eu cheguei fiz o teste de balé. A professora falou que eu era muito talentosa e se eu estava interessada em continuar. E aí, eu continuei. Dancei nesse projeto por 10 anos. Dancei na Escola de Dança Maria Olenewa. Dancei no Centro de Movimento de Deborah Colker, no grupo Corpo. 

E aí, uma professora, Betânia Gomes, entrou na sala para assistir a uma aula nossa.  E ela falou: ‘Nossa, você é muito talentosa. Vem para a frente’. Mas eu era muito tímida, sempre muito atrás, eu fui para a frente, fiz toda a pose de balé. E ela disse: ‘Nossa, a gente tem que mandar um vídeo seu para o Dance Theatre of Harlem. E eu falei: Dance Theatre of Harlem… Nossa, que companhia é essa?  E aí, ela me explicou: o Dance Theatre of Harlem foi fundado em 1969, por Arthur Mitchell, que foi o primeiro bailarino negro do New York City Ballet, bailarino principal. 

Olha, a ironia do destino: ele ia fundar o Dance Theatre no Brasil. Ele já estava com tudo pronto para fundar a companhia no Brasil, e aí teve o assassinato de Martin Luther King. Ele retornou para o Harlem, onde ele é nascido e criado, e trouxe arte para a comunidade dele. Ele pensou: ‘Eu vou fazer aqui no Harlem. Por que não?’ E aí, ele fundou o Dance Theatre of Harlem lá. E eu não conhecia a história da companhia ainda.   

Hoje em dia, é uma das companhias mais importantes do mundo. Esta companhia já tem mais de 50 anos. Eu mandei o meu vídeo para o Dance Theatre of Harlem. Entre 200 pessoas, eu fui selecionada. Vim aqui fazer o primeiro teste. Em 2007, voltei para o Brasil e falei: Caramba, agora acho que é essa é a chance da minha vida, como é que vai ser? Com muito medo.  Mas eu tenho uma mãe que é muito importante na minha vida. Sempre me incentivou. E incentivou meu irmão também que acabou fazendo balé junto comigo.  E ela falou: ‘Olha, minha filha. Essa é a chance dos seus sonhos. Você tem que seguir em frente.’  Vim de mala e cuida como uma boa brasileira. Em 2008, cheguei aqui, nessa terra, em Nova Iorque. Um frio… Foi a primeira vez que eu vi a neve. E acho que minha jornada foi entre muitas lutas por causa da língua. Não falava inglês. Não entendia nada. Era só no sorriso. Era só isso. E foi bem difícil, eu acho, essa primeira instância chegando em Nova Iorque, né? 

Porque não é fácil. Você não falar inglês. Você não ter amigos. Eu vim, especificamente para o balé. E ali, eu tinha uma amiga, que acabei conhecendo, a Flávia, que dançava comigo, traduzia muitas das coisas. Eu comecei a fazer um curso de inglês, mas acabei não aprendendo muito. E através disso, eu comecei aprender mais com a vida e as experiências. Conversava muito com os bailarinos.  E aí eu fui aprendendo um pouco da língua, um pouco da cultura. E essa foi a minha jornada até chegar aonde estou hoje. 

ON: E uma jornada de sucesso. Mas, ao mesmo tempo, você teve desafios, que todas as pessoas enfrentam. E sair de Benfica, você vai um teste na Mangueira, até chegar aqui, não foi uma jornada, um caminho muito fácil. Queria que você falasse um pouco do que continua acontecendo hoje com relação ao preconceito. A gente acabou de falar do caso do (jogador) Vini Jr., na Espanha. Como você lida com isso? 

IS: Olha, isso é uma coisa que vai fazer parte da minha vida para sempre. Você sendo uma pessoa negra, você sabe como é. Então, quando eu comecei o balé, no projeto social, até então, eu não tinha a mínima ideia de que isso era alguma coisa. Eu sempre fui criada numa casa em que a gente lia muito, sempre estudou muito, sempre foi muito informado e sempre teve voz nos ambientes em que a gente estava. E aí quando eu comecei a entrar em outros projetos de outras salas de aula, que só éramos eu e meu irmão, eu comecei a falar: Nossa, que estranho! Não era mais o mesmo normal que era na comunidade, onde eu via mais diversidade. Eu fui vendo que a gente foi se tornando minoria nesses espaços.  

E aí, quando eu comecei a entrar em outras escolas como a do Theatro Municipal no Rio, eram só eu e o Bruno na sala.  

ON: Você diz que eram duas pessoas… 

IS: Negras numa sala com mais de 30 bailarinos. E aí, eu comecei a ver: nossa que estranho isso… E aí o meu sonho era super ser bailarina do Theatro Municipal. Era meu sonho quando eu era pequena: eu quero ser a primeira bailarina. E eu comecei a ver que naquele ambiente ali, eles não estavam prontos para mim, para quem eu era. Não só o ambiente em si, mas as pessoas também.  

Eu escrevi um livro “A sapatilha que mudou o meu mundo”, e nesse livro eu relato muitos momentos na minha carreira no Brasil até ter chegado ao Dance Theatre of Harlem que totalmente me impossibilitariam e iriam me deixar invisível naquele ambiente ali. E eu só tive a oportunidade de ser quem eu sou hoje em dia, depois que eu saí do Brasil. 

ON: Você acha que melhorou? 

IS: Sinceramente, eu acho que a gente está dado passos de tartaruga para chegar a um ambiente que vai ser muito melhor para os futuros bailarinos que vão entrar. Está mudando, mas as pessoas ainda não deram aquele primeiro passo: ‘Olha, a gente vai mudar agora’. Vamos ver como essas mudanças vão levar a gente. O balé clássico ainda é muito elitista. A gente vê vários projetos de balé clássico em comunidades no Rio. Agora, mais do que nunca, a gente vê essas oportunidades chegando. Mas a gente também quer ver esses bailarinos em cargos grandes no balé clássico. Não só no corpo de baile. A gente tem que ver esses bailarinos na frente. 

A gente tem muitos bailarinos talentosos como eu. Mas que tiveram que sair do Brasil para ter oportunidades em outros espaços. 

ON: E serem reconhecidos… Eleutério. 

ON: Que essa pessoa seja você. O que está fazendo (para isso)? 

IS: Eu acho que, primeiro esses espaços têm que dar mais oportunidade, não só para bailarinos, de novo, em corpo de baile. Mas como solistas, como bailarinos principais porque se todas essas pessoas conseguem ter esses cargos em outras companhias. Por que não de onde elas vêm? Não é só sobre dar as oportunidades, é sobre acreditar nesses bailarinos. É sobre ver um potencial nesses bailarinos. 

ON: Ingrid, você falou que esta é a sua primeira vez aqui na ONU e que você entrou com o pé direito. Mas você já participou de muitas ações ligadas às Nações Unidas. Fala um pouquinho desse trabalho. 

IS: Então, eu acho que uma das ações que mexeram mais comigo, de todos os trabalhos sociais que eu faço, pensando sempre na diversidade e na arte foi o Social Good Summit. Eu dei uma palestra com a Padma Lakshmi falando sobre o projeto que eu tenho que é o Podher e falando como a gente pode trazer nesse mundo agora oportunidades de inserção de mulheres em cargos de respeito trazendo suas oportunidades, trazendo suas vozes para esse projeto também. E como a gente pode abrir portas para outras mulheres que virão. Então, este foi um projeto de que eu participei. E eu fiquei muito feliz de poder estar ali contando não só a minha história, mas também para muitas outras Ingrids e outras mulheres que virão por aí. 

ON: Ingrid, você falou sobre o ambiente não estar preparado para você. Mas como é que uma pessoa em situação de desvantagem, em termos de inclusão, pode se preparar para um ambiente desse e acima de tudo para fazer a diferença?  

IS: Olha, eu acho que tudo começa dentro de casa. Educação é uma coisa muito importante.  A gente fala da educação, mas em muitos dos ambientes, essas pessoas não estão preparadas e elas não sabem como lidar com essas situações. E eu acho que também é trabalhar no seu psicológico. É muito importante porque você vai viver situações que, necessariamente, vão ser muito indesejáveis. E como é que você usa dessas situações para que você possa não só compartilhar elas, mas fazer também com que elas não se repitam nesses ambientes. 

Eu acho que eu vivi muitos momentos bons e ruins na minha jornada, mas eu sempre tentei tirar desses momentos ruins coisas boas, que me fizessem caminhar melhor. 

Hoje em dia, se eu estiver em alguma situação de racismo, eu tento não me defender, mas explicar com graça como as pessoas podem me respeitar nesse espaço. Porque quando você se defende se torna um mecanismo para a outra pessoa que foi racista, ou cometer um ato de racismo com você, para falar que você está “se defendendo” ou você está com raiva da situação. Você é pego numa outra narrativa. E hoje em dia, eu sou muito mais inteligente quanto a isso. Se você cometeu esse caso, e eu estou num espaço como esse, eu vou que a sua narrativa ou o seu ato não foi correto. 

ON: É aí que faz a diferença o seu livro, a sapatilha, quer nos contar um pouco dessa história? 

IS: Exatamente.  E aí, por exemplo, eu acho que escrevendo esse livro que foi “A Sapatilha que Mudou o meu Mundo”, nele eu reflito muitas situações que eu já passei e como através dessa situação eu consegui manobrar, ensinar as pessoas sobre o que foi vivido ali… 

ON: Conta um exemplo para a gente que te marcou e que está no livro. 

IS: Olha, tem um exemplo muito grande. Uma das escolas de dança que eu estava, tinha uma professora que sempre falava para mim: ‘Eu não vou te corrigir mais. Você tem que colocar o bumbum pra dentro’. E até hoje, eu até escrevi isso no livro, eu não entendia o que era “colocar o bumbum pra dentro”.  Nós somos pessoas brasileiras, juntas e misturadas, com todos os tipos de raças e nações do mundo. Nós não somos europeus.  E o bumbum, no fim, é um músculo. Eu não sei, na cabeça dela ali, ela via uma menina no padrão europeu que não era uma menina negra. 

E nós, mulheres brasileiras, nós temos curvas. Mas isso nunca iria me tirar o mérito de ser bailarina. De tirar a minha técnica. Ela sempre esteve ali. Eu só acho que era um corpo, que talvez na cabeça dela não era um corpo padrão. Só que o estrago psicológico que isso fez comigo foi muito grande. Por muitos anos, eu usava saia. Eu tinha vergonha dessa parte do meu corpo porque eu não me sentia aceita. Então, é aí que eu falo que esse espaço não estava pronto para mim.  

E aí eu cheguei numa companhia, que é super diversificada, que é o Dance Theatre of Harlem, onde você entra na sala e você olha todos os tipos de corpos. Super bem tecnicamente. Esse foi o ambiente, em que pela primeira vez, ninguém falou do meu bumbum. Eles me viam como um todo. Era um ajuste técnico na bailarina que eu sou e não necessariamente em partes do meu corpo. 

 ON: Que você não pode mudar… 

IS: Exatamente. Eu nasci assim. Isso nunca me deixou de ser, o que eu poderia atingir no potencial que eu tinha. Pelo contrário. Foi uma lapidação.  E ali, no livro, eu vi muito disso. E quando a gente fala sobre a sapatilha. Por exemplo, o Arthur Mitchell começou com essa uniformização da sapatilha da cor da pele. Muitas pessoas não sabiam o que era isso: ‘Ah, a sapatilha não é associada com a roupa que você usa. Por isso que é rosa?’ Não. A sapatilha é uma continuação do pé da bailarina.  

Então, quando chegou essa era das redes sociais, eu comecei a compartilhar como eu pintava as sapatilhas, as pessoas, às vezes, ficam encantadas até hoje. Mas você pintava a sapatilha, como? 

E o meu processo era pintar as sapatilhas com a base de maquiagem do rosto para ela ficar uniformizada e da cor da minha pele. Então quando eu colocava a meia calça e eu esticava o pé, as sapatilhas eram a minha continuação. E devido a todas a essas conversas, trazendo essas reflexões que ninguém imaginava antes, eu recebi o convite do Smithsonian, do Museu em Washington D.C., African-American Museum, para ter uma das minhas sapatilhas no museu. 

E hoje em dia, ela é obra de arte no museu. Eu tive a oportunidade de ver junto com a minha filha. E foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. A gente foi chegando perto da obra assim, e ela: ‘Mamãe. Essa é a sua sapatilha?’ E eu assim: caramba! 

ON: E ele está pintada ou não? 

IS: Sim. Está pintada. Hoje em dia, a gente tem ela já customizada. Eu não tenho que pintar mais. Mas a sapatilha pintada está lá no Museu. 

ON: Lançou moda. Está certo. Ingrid, você falou na sua filha, e eu sei que ela já está desenvolvendo um gosto pelo balé que é bem natural. Você falou que é quase genético. Ela gosta de ver você. Mas eu gostaria que você falasse para as meninas, as mulheres que querem ser bailarinas ou querem ter uma profissão. Mas que por circunstâncias se sentem impedidas ou até em desvantagem, como o Eleutério falou. Vamos terminar como essa mensagem? 

IS: Olha, eu acho que, em primeiro lugar, uma das coisas mais importantes, e que parece que é clichê a frase é você acreditar em você. Você tem que acreditar em você. Porque se você não acredita em você não é o outro que vai acreditar. E eu acho que para além disso, você nunca deve desistir dos seus sonhos por mais difíceis que eles sejam. Isso é uma coisa que eu falo até hoje. Eu agradeço a mim, todos os dias. Por exemplo, estou entrando aqui hoje: que bom que você não desistiu. De todas as coisas difíceis que vieram. De todas as adversidades que lutaram contra.  

De ser uma mulher preta num ambiente totalmente elitista e até mesmo estatística.  Eu não desisti. E, às vezes eu me surpreendo em estar em vários ambientes hoje. Mas não é só se surpreender. Você tem que acreditar, você tem que lutar, você tem que ter foco. Foco é uma coisa muito importante. Ninguém tira o foco de você. E prosperar. E ver aonde você quer chegar. Eu sempre sei de onde eu vim, mas eu quero saber para onde eu vou. E é muito importante você ver essas pessoas. 

E hoje em dia, eu sou um desses exemplos. Eu sinto uma grande responsabilidade, mas uma grande gratidão porque você não consegue ser o que você não consegue ver. E vendo a possibilidade de ser, você se torna. 

ON: Há quem tem tudo isso, mas não tem a sapatilha, como na África. A menina sonha, vê as meninas no balé ali e tal, mas não pode porque não tem as sapatilhas. Que conselho teria para essa menina? 

IS: Nossa! Eu acho que assim, as redes sociais elas são tão grandes. Eu recebo muitas mensagens, de meninas de vários lugares do mundo. O que eu tento primeiro fazer é ajudar. Tem muita gente, que eu até falo: não posta, eu doo as sapatilhas. Eu acho que eu faço o primeiro passo. Eu acho que é muito importante que se tiverem projetos sociais nesses ambientes, que eles vão até lá e ajudem e consigam ajudar as crianças com esses sonhos. Eu acho que principalmente para essas meninas é: não deixem de sonhar. Não deixem de procurar as oportunidades. Não deixem de mandar as mensagens para as pessoas de que vocês gostam. 

Eu dou graças a Deus porque eu sou uma pessoa muito alcançável. Se você me mandar uma mensagem na rede social, eu vou te responder. E a partir daquele momento ali, eu vou tentar te ajudar para saber onde tem uma escola próximo de você. Onde a gente pode achar um projeto em que você possa fazer uma audição para ganhar uma bolsa. Eu acho que começa a partir dali. E tem uma coisa que eu  queria muito de fazer, e você acabou de falar sobre isso. 

Um dos meus sonhos é poder ir para a África, encontrar um processo social lá, alguma escola, algum lugar de dança para poder dar aula, para poder estar próximo dessas crianças. Para poder tentar trazer a oportunidade para aquele ambiente ali que é tão distante para elas. Mas que não é impossível e fazer com que elas continuem sonhando em ter a oportunidade. 

ON: Este foi o Podcast ONU News com Ingrid Silva. Muito obrigada, Ingrid! Obrigada, Eleuterio! 

IS: Obrigada! 

FIM 

Fonte: Organização das Nações Unidas

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